O estudante de cinema João Victor Montuori, de 22 anos, assiste a praticamente um filme por dia, seja no cinema ou em casa. Assim que os créditos finais aparecem, ele segue um ritual: abre o aplicativo do Letterboxd, busca pelo título que acabou de assistir e o marca como “assistido”. Muitas vezes, ele também escreve uma breve resenha sobre a produção.
Montuori é apenas um dos milhares de usuários que seguem rigorosamente essa formalidade – muitos outros iguais ao estudante de cinema também são encontrados na plataforma, que evoluiu de algo de nicho para cinéfilos a um dos produtos digitais com maior adesão em Hollywood. Se você é um grande fã de cinema e acompanha as tendências da indústria, é provável que tenha ouvido falar do Letterboxd.
Recentemente, a rede social que promete ser uma comunidade global para os cinéfilos estourou a bolha, ganhou milhões de usuários, gerou memes e fantasias e até atraiu nomes como Martin Scorsese, Sean Baker (diretor de O Projeto Flórida), Ayo Edebiri (atriz vencedora do Emmy por O Urso), Christopher McQuarrie (roteirista de Missão: Impossível), Rachel Sennott (atriz de The Idol), Kleber Mendonça Filho (realizador brasileiro vencedor de Cannes por Bacurau), Olivia Rodrigo (cantora e musa teen) e outros.
Apesar da explosão recente, a plataforma não é exatamente uma novidade: foi criada em 2011 por dois pequenos empreendedores na Nova Zelândia, os web designers Matthew Buchanan e Karl von Randow.
Até o início de 2020, eram apenas 1,8 milhão de membros. Atualmente, segundo dados enviados pela própria rede ao Estadão, são mais de 13 milhões ao redor do mundo – desses, 2,25 milhões estão na América Latina. Além disso, a plataforma, disponível apenas em inglês, acumula mais de 2 bilhões de visualizações mensais na web e aplicativo móvel.
Em setembro de 2023, Buchanan e von Randow, venderam grande parte das ações da empresa para a Tiny, uma espécie de holding de pequenos negócios digitais com sede no Canadá. Uma fonte do jornal New York Times afirma que a venda avaliou a plataforma em cerca de US$ 50 milhões (R$ 258,7 milhões, na cotação atual).
Para a pesquisadora e crítica de cinema Isabel Wittmann, que usa a plataforma desde 2013, e presenciou o crescimento e a popularidade dela nos tempos recentes, a equipe do Letterboxd “entende a mentalidade das pessoas apaixonadas por cinema e implementa funções que se enquadram muito bem para usos diversos”. Mas, afinal, quais são essas funções?
Como funciona o Letterboxd?
O Letterboxd pode ser acessado por qualquer pessoa na internet, mas, ao criar uma conta na plataforma, é possível marcar (ou “logar”, na linguagem da aplicativo) os filmes que você assistiu anteriormente e criar uma espécie de diário à medida que se assiste a outros. Ao marcar um filme, você pode dar uma nota, de zero a cinco a estrelas – elas podem ser “quebradas”, como 4,5 –, escrever uma resenha de quantos caracteres desejar, marcar a produção como “favorita”, adicionar a uma lista, entre outras coisas.
Logo na página inicial, o usuário consegue descobrir quais são os filmes mais populares entre os membros do site naquela semana e ver o que as pessoas que segue têm assistido. Algo que, com o tempo, foi atingindo números cada vez maiores. Segundo o crítico de cinema Filipe Furtado, usuário do serviço desde 2013, antigamente, quando alguma produção atingia o número de 50 mil visualizações já era algo impressionante.
“Filmes como Mad Max - Estrada da Fúria conseguiram essa proeza. Hoje em dia, no entanto, é bem mais comum que filmes populares ultrapassem a marca de um milhão de logs em questão de horas”, pontua Furtado, que já foi o brasileiro mais seguido do Letterboxd – ele perdeu o posto para a crítica de cinema Isabela Boscov, queridinha das redes sociais, apenas recentemente.
Já na aba de pesquisa, é possível descobrir dados sobre diferentes produções e circular por categorias, incluindo ano de lançamento, país, gênero e filmes mais populares e mais bem avaliados.
Na base de dados do Letterboxd, estão longas, curtas-metragens e minisséries por meio de informações-chave obtidas pelo The Movie Database (TMDB), uma alternativa de crowdsourcing ao IMDb – o que, para Furtado, é outro ponto positivo do aplicativo. “Desde meados dos anos 90, o IMDb tem sido o principal banco de dados de filmes na internet. No entanto, desde que a Amazon o adquiriu, o site tem piorado a cada atualização. Por outro lado, embora o Letterboxd não ofereça tantas informações, ele se tornou muito mais prático para pesquisas simples”, pontua.
O site também tem a opção da criação de listas – todo usuário pode criar um compilado de filmes de um tema qualquer, e acessar listas de outros usuários. Há a opção de marcar produções que você deseja assistir mais tarde, criando a sua “watchlist” (algo como “lista para assistir”).
Acredito que o sucesso do Letterboxd se deve em grande parte à maneira como os responsáveis pelo site encontraram um equilíbrio entre as atividades lúdicas que os cinéfilos sempre apreciaram, como o diário, as notas e as listas, e o sentido de comunidade e narcisismo que as redes sociais promovem
Filipe Furtado
Mas um dos trunfos do Letterboxd talvez tenha sido algo que é exclusivo da plataforma: cada usuário pode escolher seus quatro filmes favoritos e deixá-los expostos em seu perfil. Para Montuori, esse é uma das marcas do site: “Geralmente falamos em três, cinco filmes preferidos. Mas ali são quatro, expostos sem ordem de preferência. [Além disso], é uma plataforma intuitiva e tem um pouco do Twitter, agora X. Já vi textos de uma, duas linhas, mas também textos enormes”.
Assinatura do Letterboxd
Desde outubro de 2023, o estudante também é assinante da plataforma. O Letterboxd possui dois tipos de assinatura: PRO (R$ 49 por ano) e PATRON (R$ 129 por ano). Montuori optou pela segunda, que oferece, entre outras funções, estatísticas personalizadas, diferentes pôsteres e cenários, retrospectivas anuais e não receber anúncios.
Para ele, ver as próprias estáticas e entender a forma como tem consumido cinema é importante. É o caso de perceber que assistiu a mais filmes estadunidense do que brasileiros, por exemplo. “Tem uma questão ali de olhar essas estatísticas próprias de maneira política. ‘Nossa, preciso assistir a mais filmes de outros países, de outros gêneros, mais filmes de mulheres, indígenas e por aí vai”, explica.
Isabel, que optou pelo plano pro e também usa a plataforma todos os dias – seja recreativamente ou profissionalmente – acredita que as funções pagas também contribuem para a popularidade do Letterboxd: “São interessantes o suficiente para atraírem a contribuição de usuários de um serviço que, de qualquer forma, já seria gratuito”.
Entre Scorsese e Kleber Mendonça Filho
Apesar de contar com uma popularidade gradualmente maior a cada ano, o aplicativo ainda era visto como um “pequeno hobby de nicho”. Para as fontes consultadas pelo Estadão, a pandemia da covid-19 foi um fator que impulsionou esse crescimento, com muitas pessoas em casa, consumindo filmes e buscando mais conteúdo sobre cinema na internet. No entanto, é possível dizer que a maior virada de chave cultural do Letterboxd aconteceu em 2023.
Durante a última temporada de prêmios, encerrada em março deste ano com a vitória de Oppenheimer no Oscar, Greta Gerwig (diretora de Barbie) passou a trazer o nome do aplicativo em conversas sobre o seu filme com a boneca mais famosa do mundo.
Inclusive, em um entrevista ao Letterboxd, a realizadora compartilhou uma lista com os 32 filmes que ajudaram a inspirar a produção estrelada por Margot Robbie – que pode ser vista aqui. Entre eles estão clássicos como Jejum de Amor (1940), Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e O Poderoso Chefão (1972). “É maravilhoso, pois os filme são ótimos e chegaram a muitos que talvez não se interessassem”, diz Furtado sobre a lista de Gerwig.
A fama do site ganhou ainda mais respaldo no dia 26 de outubro com a chegada de um notório usuário: Martin Scorsese, que criou conta na plataforma durante a campanha do Oscar para o seu filme Assassinos da Lua das Flores. Rapidamente, a entrada do realizador chamou atenção e, em apenas algumas horas, Scorsese já ganhado mais de 280 mil seguidores – hoje, ele conta com mais de 360 mil.
Scorsese não é o único realizador que tem uma conta pública na plataforma. O diretor brasileiro Fábio Leal também está lá. “É uma ferramenta extremamente útil para nós, cineastas”, explicou ao Estadão.
Por exemplo, eu lancei meu último filme, ‘Seguindo Todos os Protocolos’, durante a pandemia. Originalmente programado para estrear na Mostra de Cinema de Tiradentes em 2022, o evento foi cancelado e transformado em uma edição online. Assim, o Letterboxd se tornou minha única fonte de feedback para compreender como o filme estava sendo recebido pelo público e pela crítica.
Fábio Leal
Para o cineasta, foi incrível ficar em casa atualizando a página do aplicativo para ver a recepção. “Além disso, quando uma pessoa com grande influência dentro da plataforma escreve sobre o seu filme, você também ganha um impulso, tanto na sala de cinema quanto no consumo online do seu filme”, acrescenta.
Leal também notou um impulso da popularidade do seu longa após uma crítica escrita por Kléber Mendonça Filho, outro usuário notável, viralizar na plataforma. “Despertou o interesse de pessoas que antes não eram alcançadas”, ele disse.
Apesar disso, Furtado ainda avalia a penetração do Letterboxd na indústria como uma espécie de teste. “Até porque a maioria desses famosos não utiliza regularmente. O Scorsese mesmo... ele visivelmente entrou como parte da divulgação do filme dele.”
Entretanto, o crítico de cinema pontua que a plataforma tem gerado um bom espaço na divulgação de filmes, especialmente os independentes, mencionando o sucesso das produções de terror Skinamarink e We’re All Going to the World’s Fair: “Como qualquer rede social, existem algumas subcomunidades muito fortes lá dentro e, para espaços segmentados da indústria, isso às vezes é muito útil”.
A plataforma pode ter um papel significativo no cenário cinematográfico brasileiro, contribuindo para a descoberta de filmes que não estão tão em evidência na cena nacional e até mesmo influenciando na decisão de restaurar algumas dessas produções.
Fábio Leal
A facilidade na divulgação de filmes independentes também é um ponto positivo para João Victor Montuori, o estudante de cinema e adepto do app. Ele destaca que é “muito prático” colocar novos filmes no TMDB (e, portanto, no Letterboxd). “Eu mesmo já coloquei um curta meu, [chamado] I Want, I Can´t, I Won´t”, conta. “É muito legal porque você pode achar curtas de alguém do outro lado do mundo, que talvez não tenha nenhuma avaliação e apenas um link para você assistir. Tem a ver também com a democratização do acesso a esses filmes.”
Expansão do Letterboxd e vídeos no Brasil
Com o crescimento de sua plataforma, o Letterboxd preparou estratégias de expansão e tornou-se, também, um veículo de mídia. A equipe lançou um podcast, o The Letterboxd Show, a revista digital The Journal e agora tem até mesmo membros que marcam presença no tapete vermelho, onde incentivam as estrelas a compartilhar seus quatro filmes favoritos – em referência a uma das principais ferramentas do site.
No TikTok, por exemplo, o perfil do Letterboxd acumula mais de 570 mil seguidores e 25,6 milhões de curtidas. Astros como a vencedora do Oscar Emma Stone (Pobres Criaturas), Ryan Gosling (Barbie) e Natalie Portman (Cisne Negro) aparecem em vídeos recentes contando seus quatro filmes favoritos. Alguns dos vídeos na plataforma somam milhões de visualização e são, também, uma força motora para atrair novos usuários.
A partir dessa comunidade nas redes, a empresa busca também alcançar o público de países fora do eixo Estados Unidos/Nova Zelândia. Quem tem feito parte disso é Felipe Fonseca, que mantém um canal no YouTube sobre cinema desde 2008 e é usuário do Letterboxd desde 2013. Formado em Cinema, resolveu arriscar: procurou a equipe da plataforma e se ofereceu para gravar vídeos aqui no Brasil.
A equipe, que Felipe descreve como “ainda enxuta”, topou a ideia e, em julho de 2023, foi ao ar um vídeo dele entrevistando usuários de São Paulo para descobrir os quatro filmes favoritos deles. “Foi o primeiro vídeo que eles postaram que não era em inglês. Isso foi muito legal. Eles tinham a ciência do tamanho do público brasileiro que eles têm e sabem o quão engajados os brasileiros são”, conta.
Desde então, Felipe é colaborador frequente do Letterboxd, seja para vídeos ou traduções – recentemente, ele colaborou traduzindo um vídeo em que Wagner Moura fala em português –, mas deixa claro que não tem vínculo ou representa a plataforma. Ele acredita que o formato de vídeos curtos, em sua maioria com pequenas listas, é um dos segredos para o crescimento do app - e por ele fazer sucesso em redes como TikTok e Instagram e atrair engajamento do público.
Felipe acredita que o Letterboxd deve buscar colaboradores ao redor do mundo para expandir o seu alcance em outros países. Mas há um grande impeditivo para um acesso realmente global à plataforma: ela é inteiramente em inglês.
“Há interesse em ter [o site e o aplicativo] em outras idiomas, mas a equipe ainda é pequena. Me parece que eles ainda não têm infraestrutura [para isso]”, diz Felipe.
Para os próximos passos, o Letterboxd já disse que pretende expandir o alcance da atuação da plataforma - mas em outro sentido, adicionando série de televisão ao seu banco de dados. Decisão que não é abraçada pela maior parte do público. Pelo menos é o que aponta o site de feedback do aplicativo: atualmente, mais de 4 mil usuários disseram que desaprovam a ideia - de longe, o maior número de discordância em relação aos possíveis planos do site.
“Eu acho que depende muito como vai ser feito. Torço que TV funcione como uma aba a parte da linha do tempo para não poluir demais a interface. No geral, acredito que investidores têm uma crença generalista que não é necessariamente boa para os espaços como o do Letterboxd. A especificidade é importante para a identidade dele”, finaliza Filipe Furtado.
O Estadão entrou em contato com o Letterboxd e questionou se há planos para criar um escritório na América Latina ou adaptar o site para outros idiomas. A equipe chegou a enviar dados à reportagem, mas não respondeu a esses questionamentos até a publicação deste texto.
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