Philippe Powell tinha por volta de dez anos quando foi apresentado a Pierre Barouh. Tarde de fim de semana no Rio, início dos anos 70, o garoto brincava no quarto dos pais quando viu pela janela uma figura de cabelos desgrenhados e camisa longa entrar na casa e reaparecer já pisando no quarto. “Oi, Pierre!”, disse seu pai, o violonista Baden Powell. “Ali eu soube que aquele homem era alguém da família”, lembra Philippe.
Esta também foi a primeira vez que Philippe viu o filme Saravah, que Pierre trouxera para ser exibido ali mesmo na TV da sala. Fruto da amizade de Baden Powell e do ator e diretor francês Pierre Barouh, o documentário é um importante registro da música brasileira nos anos 60, com ases em fim de carreira, como Pixinguinha e João da Baiana, e então promessas, como Maria Bethânia e Paulinho da Viola.Uma obra que, até pouco tempo atrás, estava relegada a trechos e versões de baixa qualidade no YouTube.
Veja abaixo uma destas reproduções, ainda com resolução menor e cerca de dez minutos a menos do que o filme original, agora restaurado e pronto para ser exibido em 2024:
“O rolo estava guardado nos arquivos da produtora e o filme tinha sido exibido apenas algumas vezes em festivais, sessões para amigos, mas encontramos a fita original do filme e, com a ajuda do Centro Nacional do Cinema francês, fizemos a restauração”, explica Benjamin Barouh, filho de Pierre e diretor da produtora Editions Saravah, logo antes de uma das primeiras sessões públicas da nova edição do filme, realizada na semana passada em Paris.
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A restauração da fita acentuou aspectos como profundidade e realçou cores antes desbotadas, como as das roupas de Maria Bethânia, Raulzinho do Trombone e Luís Carlos Vinhas, ao piano, na cena em que ensaiam Frevo No 2 do Recife. O áudio também ganhou nuances: na nova versão, é possível ouvir com nitidez o violão num crescendo comedido de Baden Powell ao acompanhar João da Baiana e seu célebre prato e faca — peças atualmente em exibição no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.
“Além de restaurado, o filme também foi legendado e agora temos uma distribuidora, então a partir de 2024 ele vai aos cinemas, algo que ainda não tinha acontecido em todos esses anos”, afirma Benjamin, ainda sem informações sobre uma possível exibição do documentário no Brasil.
A história de amor de Pierre Barouh com o país começou na década de 1950, quando o então jovem artista conheceu Sivuca em uma temporada em Lisboa. Por intermédio dele, Barouh se enturmou com outros músicos brasileiros de passagem pela Europa, como Baden Powell e Vinicius de Moraes. Pierre os introduziu ao milieu parisiense, Baden gravou seu primeiro disco na França, e a amizade se solidificou.
Em meados dos anos 1960, Pierre foi ao Brasil para rodar a co-produção franco-brasileira Arrastão, para a qual traduziu e cantou Samba da Benção, de Vinicius de Moraes. A gravação feita junto de medalhões como Milton Banana e Oscar Castro Neves voou mais longe e foi parar na trilha de Un homme et une femme, pérola da nouvelle vague premiada em Cannes em 1966 com Pierre como protagonista.
Na sua versão do samba, o ator canta: “Eu, que sou talvez o francês mais brasileiro da França, gostaria de falar do meu amor pelo samba como um amante que não ousa falar de seu amor a sua amada, mas que só sabe falar disso a todos que cruzam seu caminho”.
Atuando como um embaixador amador do Brasil na França, Pierre foi convidado pelo cineasta conterrâneo Pierre Kast a acompanhar filmagens sobre candomblé na Bahia e no Rio em 1969. “Meu pai chega ao Rio e as sequências que o Pierre Kast ia filmar no Rio não dão certo”, explica Benjamin. “Pierre Kast insiste: ‘se você quiser fazer algo, eu tenho a equipe, tenho o material, tenho o rolo de fita’”. Com algumas ligações, Pierre consegue reunir um time de peso para um final de semana de situações tão triunfantes como triviais.
Pixinguinha, sentado numa mesa de boteco, é interpelado por uma conhecida pouco antes de declamar a canção francesa que apresentara com os Oito Batutas na Paris da década de 20. João da Baiana fala iorubá e sapateia um samba duro. Em uma praia de Niterói, um tímido Paulinho da Viola acompanha nas cordas a potente voz da jovem Maria Bethânia. Sem perder o ritmo, Baden Powell toca violão e dá três tragos de cigarro em quatro compassos de Tempo de Amor.
“Esse filme se tornou lendário justamente porque surgiu como obra do improviso, nascido do mesmo espírito da bossa nova, dessa arte do encontro”, diz Benjamin. “Se esse roteiro tivesse sido escrito, não teria sido possível fazê-lo. É um filme que não custou nada. O único custo foi o preço da edição. É um filme que nasceu sem ambições, e foi o primeiro filme dirigido por meu pai”.
Nos anos seguintes, Pierre voltou ao Brasil para filmar e visitar amigos. Também teceu relações com o Japão e continuou suas produções na França. A amizade com Baden Powell manteve-se firme. Quando da morte do artista, em 2000, Pierre se prontificou a ajudar seus filhos, Philippe e Marcel, ainda em início de carreira. Pierre Barouh morreu em 2016.
As ambições atuais de seu filho contam com levar o filme a um público maior e o Brasil pode entrar na lista de países que vão receber sessões de Saravah em 2024. Seria um retorno póstumo de Pierre Barouh ao país que o acolheu. “Essa amizade entre Pierre e meu pai é algo de muita intimidade”, diz o franco-brasileiro Philippe Powell. “E meu pai tinha intimidade com artistas como Pixinguinha, a ponto de falar a eles: vamos revelar para esse cara, que não é brasileiro, esse nosso lance. Isso é algo incrível.”
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