‘Regra 34′, de Júlia Murat incorpora voz feminina e radical à discussão sobre sexo

Longa que ganhou Leopardo de Ouro está em cartaz

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Nenhum grande nome na 75ª edição do Festival de Locarno, no ano passado, mas algumas obras transgressivas, e inesperadas. Em sua edição de setembro de 2022, Cahiers du Cinéma dá conta da realização do festival suíço. O júri integrado por Alain Guiraudie, o autor de Um Estranho no Lago, outorgou o Leopardo de Ouro à brésilienne Júlia Murat, por Regra 34. O filme estreia nesta quinta, 19. “O roteiro cruza, sem facilidade, reflexão política distanciada e evocação íntima. O retrato de Simone, interpretada pela formidável Sol Miranda, que também é oponente de (Jair) Bolsonaro. A estudante de direito que extravasa suas pulsões masoquistas na internet. O filme interroga-se sobre a oportunidade das regras - sejam as do Direito ou da rede -, sobre a noção de livre arbítrio e os limites da transgressão.”

Pode-se abordar o filme de Júlia - o melhor e mais ousado da autora - somente a partir do uso de sua admirável atriz. O cinema começa e se dilata na epiderme dos atores. Na faculdade e no tribunal, Simone usa o cabelo preso. De noite, como camgirl, o cabelo está solto, compondo a persona de tigresa. Ecos de Don Luís (Buñuel) e Catherine Deneuve, A Bela da Tarde. Júlia - “Queríamos construir uma personagem que tivesse consciência de suas máscaras sociais. Todos nós agimos diferente em função do contexto, mas Simone teria muito domínio de suas performances e agiria de maneira distinta em cada espaço - defensoria, kung fu, festas, cenas em sua casa, sexo.”

Cena do filme 'Regra 34', de Julia Murat.  Foto: Amina Nogueira

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Por isso, Júlia segue explicando, “buscamos construir essas diferenças através de diferentes caminhos. A lente usada para filmar cada cena e sua profundidade focal, o nível de contraste dos figurinos em relação ao cenário, a presença ou não de maquiagem, o tom da atuação, o diálogo. O cabelo faz parte desse combo.” Regra 34 nasceu de um desejo de Júlia - fazer um filme sobre pornografia. Mas qual filme, como? A luz veio quando ela leu a entrevista de uma estrela norte-americana do sexo explícito. “Ela dizia que a pornografia não diz respeito à moralidade, mas a limites. É testar os limites do próprio corpo.” Foi assim que surgiu a Simone do filme.

No início, ela não era negra. A opção surgiu quando Júlia descobriu a poderosa Sol, e sentiu que tinha a sua Simone. Foi se aconselhar com amigos - “Todos diziam que era loucura. Um filme sobre mulher e sexualidade, sobre a violência no sexo, já seria polêmico, com uma negra, então, iriam cair matando.” Apesar das opiniões em contrário, Júlia bancou sua escolha. O filme ganhou com isso. O espectador que vir Regra 34 após já ter assistido a Corsage, o longa de Marie Kreutzer em cartaz, talvez se surpreenda com a similaridade de certas cenas. A imperatriz Sissi ordenando à aia que aperte mais e mais o espartilho, para ficar com uma cinturinha de vespa. Simone fazendo asfixia e pedindo ao parceiro que aperte mais e mais sua garganta. São cenas que testam os limites não apenas das personagens, mas dos espectadores.

O repórter evoca uma sensação curiosa que teve ao assistir a Regra 34. Muitos anos atrás, a mãe de Júlia, a também cineasta Lúcia Murat, fez filmes sobre mulheres torturadas na ditadura. O horror da tortura. A tortura, agora, como prazer. Júlia confessa que há tempos não via os primeiros filmes da mãe. Reviu Que Bom Te Ver Viva recentemente. Entende o que o repórter está querendo dizer. “A grande diferença é que a violência é consentida em Regra 34.” Para encerrar, vale voltar à Cahiers. A revista afirma - “Cerebral e de um despudor extremo, o filme foi leopardizado pelo júri - Guiraudie e Laura Samani - que soube apreciar a pertinência e o desconforto que provoca.” Justamente o desconforto - os homens devem se preparar para a cena em que Simone brinca com a faca na genitália do amigo e parceiro, Lucas Andrade. Regra 34 incorpora uma voz feminina, e radical, à discussão sobre sexo e limites que tem sido levada predominantemente pelas vozes masculinas no cinema brasileiro.

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