A continuação de Gladiador (2000) representava um desafio aos estúdios Paramount. Afinal, já se passaram mais de 20 anos desde a estreia do longa que rendeu cinco Oscars aos criadores, incluindo as estatuetas de melhor filme e melhor ator para Russell Crowe.
A produção original arrecadou respeitáveis US$ 465 milhões — soma ainda mais impressionante considerando o custo inferior dos ingressos nas décadas passadas. Além disso, o protagonista e seu principal adversário, interpretado por Joaquin Phoenix, morrem na trama. “Péssima estratégia: não mate seu protagonista e seu vilão se você pretende fazer uma sequência!”, brinca a produtora Lucy Fisher, em entrevista ao Estadão.
Tamanha pressão justifica a demora no desenvolvimento do novo projeto, de acordo com outro produtor da sequência, Douglas Wick. “Nós não tínhamos nenhum interesse em fazer um filme apenas pelo dinheiro, ou criar algo que se parecesse mera sombra do original”. Ele confirma que diversos roteiros foram iniciados e abandonados desde então, por não estarem à altura do épico dirigido por Ridley Scott.
O único consenso se encontrava na figura de Lucius, o garotinho da história anterior. Ele precisaria ser o condutor da trama. “Quando faço um filme de sucesso, eu apenas sigo em frente. Em 20 anos, fiz 20 filmes”, Scott nos explica. “Mas no caso de Gladiador, quatro anos depois, as pessoas ainda falavam nele o tempo inteiro. E desde então, continuam assistindo. Por isso, pensamos na sequência.”
Desta vez, Lucius (Paul Mescal) pertence ao grupo conquistado pelos generais romanos. Transformado em escravo, passa a disputar batalhas sangrentas no Coliseu. Enquanto ignora seu passado familiar, o novo herói segue as ordens de dois imperadores cruéis (Joseph Quinn e Fred Hechinger) e se aproxima de Macrinus (Denzel Washington), um ex-comerciante com fortes ambições políticas.
A escolha de Paul Mescal
Segundo os criadores, a seleção do protagonista era fundamental para o sucesso da nova empreitada. Afinal, Gladiador consagrou a carreira de Russell Crowe enquanto protagonista de produções dramáticas e de ação. Wick explica: “Encontramos todos os atores possíveis desta faixa etária. Se errássemos nesta escolha, o projeto inteiro estaria em risco”.
Ridley Scott se interessou por Paul Mescal após assistir à série Normal People. Já os produtores o questionaram a respeito de seu preparo físico, contentando-se quando escutaram que o irlandês treina rúgbi há anos. O chefe da Paramount voou para Londres apenas para vê-lo numa peça de teatro. Ao final, ligou para os Estados Unidos: “Esse cara é fenomenal, precisamos fechar com ele”. Ridley Scott concorda: “Quando filmamos grandes cenas com Paul gritando para a multidão ‘é isso o que vocês fazem com os heróis em Roma?’ havia um teor shakespeariano. Era preciso trazer esta habilidade teatral que ele possui”.
Para Fisher, Mescal se sobressai por “encarnar dois lados da masculinidade: o herói forte e musculoso à moda antiga, mas também o homem moderno, sensível e questionador. O papel exige estes dois aspectos do heroísmo. Além disso, ele nunca deixa a importância do papel subir à cabeça até se tornar um babaca. É um homem muito atencioso e profissional”, garante.
Mesmo assim, suspeitam que uma produção deste porte represente uma surpresa ao ator tímido, avesso à fama, buscando apenas se tornar um intérprete cada vez mais completo — nas palavras dos criadores. Eles não escondem a ambição de conquistar, novamente, os maiores prêmios do Oscar. “Paul precisa apertar os cintos, porque ele está prestes a embarcar numa jornada incrível”, antecipa Wick.
‘Um vilão magnífico’
Quanto aos demais nomes do elenco, Pedro Pascal foi escolhido rapidamente, devido à excelência na premiada série The Last of Us. No primeiro encontro com Scott, ele escutou uma curta descrição a respeito do general Marcus Acacius, que se casa com Lucilla (Connie Nielsen). O ator respondeu ao convite de imediato: “Está brincando? Claro que topo. Quando começamos?”. Ele encarna inicialmente um dos antagonistas da história, até revelar certas nuances que, segundo os produtores, decorrem inteiramente do talento de Pascal.
No entanto, quem rouba a cena na sequência é Denzel Washington, no papel ambíguo do homem que ajuda Lucius, apenas para vê-lo enfrentar adversários mais perigosos na arena. Com o sucesso do pupilo, Macrinus se aproxima do cargo de senador. “Pensei: quem poderia ser um vilão magnífico, com um papel determinante na trama?”, questionou-se Scott, antes de convidar o ator com quem já havia trabalhado em O Gângster (2007).
O personagem, um dos mais complexos do novo roteiro, já esteve entre os prisioneiros de guerra, sobreviveu às lutas na arena, libertou-se, e hoje comanda os espetáculos com novatos. “Denzel adora interpretar o vilão, mesmo que a oportunidade não apareça com frequência”, revela Fisher. “Quando ele surge no filme, lindíssimo com o cabelo grisalho e o figurino imponente, sabíamos que tinha sido a escolha perfeita.”
O resultado, de fato, impressiona pela transição entre a malícia, a camaradagem e a ameaça - às vezes, na mesma cena. Não será uma surpresa se o veterano, vencedor de dois Oscars, conquistar sua décima primeira indicação nos próximos prêmios da Academia.
68 câmeras ao mesmo tempo
Gladiador II chama atenção por reunir, 25 anos depois das filmagens originais, praticamente os mesmos chefes de departamento (de fotografia, som, efeitos visuais, produção, etc.). Os criadores garantem que tamanho interesse se deve, evidentemente, ao sucesso do primeiro filme, mas também ao estilo de trabalho peculiar de Scott. O cineasta utiliza 68 câmeras simultâneas, cada uma focada em um ângulo ou personagem. Assim, as filmagens ocorreram com rapidez.
“Os atores levaram alguns dias para se acostumar, mas, no final, gostaram porque não ficavam entediados repetindo 10, 15 vezes cada ação. Eles mal executavam uma cena, e já passavam à próxima”, pontua Fisher. “Eu dizia: ‘Calma aí, não prestei atenção no close-up do Paul, porque estava olhando a imagem do Pedro’”. O cineasta, no entanto, assistia às 68 telas em simultâneo, concentrando-se em cada ponto de vista pré-determinado por ele.
Scott justifica tamanha agilidade: “Eu desenho todos os storyboards em detalhes. Uma das melhores decisões da minha vida foi cursar faculdade de artes. Eu consigo desenhar e pintar de verdade — já fiz até quadrinhos, dos bons. Meus storyboards se parecem com quadrinhos para adultos, e se tornam livros imensos no final”. Os desenhos, cena a cena, plano a plano, eram entregues a cada chefe de departamento, e atualizados diariamente, conforme novas ideias surgiam no processo.
O longa-metragem encanta igualmente pelos efeitos visuais — mais uma aposta segura para as premiações norte-americanas. Lucius combate rinocerontes e outros animais gigantescos, concebidos via tecnologia computadorizada. Wick explica que o roteiro de 2000 já expressava o desejo de colocar Russell Crowe combatendo rinocerontes, porém os efeitos visuais não transmitiam verossimilhança. Cogitaram levar um animal verdadeiro a Malta, até serem fortemente desaconselhados por treinadores. Agora, no entanto, a magia se completa e atualiza.
As batalhas navais, para a nossa surpresa, nunca envolveram água de fato. Os navios deslocam-se sobre rodas pelo chão do Coliseu — a água foi acrescentada posteriormente, em CGI. 500 figurantes encarnam os 40 mil ocupantes das arquibancadas, movendo-se em cada setor da arena, com figurinos distintos, e interpretando personagens diferentes. “Nos planos abertos, nós incluímos dezenas de milhares de pessoas digitalmente. É importante para os combatentes. Precisamos ajustar o tom da plateia para o que acontecia em cada momento dentro da arena”, pontua Scott.
Fidelidade à história
O cineasta de filmes como Napoleão (2023), O Último Duelo (2021), Êxodo: Deuses e Reis (2014) e Robin Hood (2010) é frequentemente cobrado pela fidelidade aos fatos históricos. Em paralelo, recebe algumas críticas pelas liberdades tomadas em nome da ficção e do entretenimento. Entretanto, ele questiona tais demandas.
“Algumas coisas são óbvias: figurinos, armas e objetos disponíveis em museus são fatos. Todo o resto é suposição. Eu costumo perguntar: ‘Você estava lá? Não estava. Então como pode saber?’”. Segundo o britânico, registros de historiadores são constantemente revistos, aprimorados, de modo que nosso conhecimento atual pode se provar obsoleto dentro de algumas décadas. Por isso, minimiza a busca por uma verdade absoluta. Para ele, com exceção das datas, o funcionamento das arenas pode ser ficcionalizado.
Para além do debate acerca dos fatos, Ridley Scott afirma: “Amo recriar um mundo que não existe mais. Eu fiz algumas obras contemporâneas também, como Falcão Negro em Perigo, Rede de Mentiras e Thelma e Louise. Também fui para o futuro diversas vezes, então acho que cobri o espectro temporal. Mas adoro voltar ao passado. Já estou pensando como Gladiador III poderia ser, porque ele termina com um gancho perfeito para a terceira produção”.
Questionado a respeito de sua percepção do cinema contemporâneo, o britânico critica o filão de super-heróis, responsável por algumas das maiores bilheterias dos últimos 15 anos. Considera-os antiquados, excessivamente dependentes dos efeitos visuais, além de baseados em roteiros “fraquíssimos”. “É possível escrever um bom roteiro a partir de qualquer ideia, então considero preguiçoso o que encontro nestas produções”.
O cineasta complementa: “Na verdade, Alien, o 8º Passageiro é a trama de uma super-heroína contra um super-monstro. Talvez o melhor monstro da história do cinema seja o Alien. Blade Runner também tem um super-herói: Deckard. Por que não daria para fazer uma história melhor para estes filmes de super-herói atuais? É um desfile de coreografias e batalhas em efeitos especiais. Que chatice!”.
Aos 86 anos, Scott trabalha em ritmo intenso. Ele possui cinco produções em desenvolvimento enquanto diretor — o que inclui um faroeste, um suspense de ação, a biografia dos Bee Gees e uma minissérie de 10 episódios sobre a Segunda Guerra Mundial. Além disso, na função de produtor, está envolvido em mais de uma dezena de projetos, com destaque para a série Alien. Ele conclui: “Como dizia Orson Welles, fazer filmes é o melhor trem de brinquedo que um garoto poderia ter. E eu adoro trens de brinquedo”.
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