Saga de jovem da etnia indígena Krahô é centro de 'Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos'

Filme de Renée Nader Messora e João Salaviza foi exibido na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes

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Renée Nader Messora e João Salaviza conheceram-se no curso de cinema, em Buenos Aires. Ela, brasileira, ele, português. Casaram-se, têm uma filha, acabam de estrear – na quinta, 18 – seu filme conjunto Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos. Bem antes, Renée foi chamada por um amigo antropólogo que pesquisava os índios Krahôs. As novas lideranças estavam preocupadas com o desaparecimento dos antigos, depositários das tradições. Renee foi convidada a documentar essas tradições – ritos, cantos, danças, relatos –, antes que se perdessem. Virou peça importante do coletivo Guardiões da Cultura Mentuwajê, que reúne fotógrafos e cinegrafistas indígenas, e utiliza o audiovisual como ferramenta de afirmação e sua identidade cultural.

Em Cannes, no ano passado, Chuva participava da seleção oficial, na mostra Un Certain Regard. Recebeu o prêmio especial do júri. Renée lembra: “Benicio Del Toro, que presidia o júri, nos disse que foi um grande defensor do filme. Embora seja sobre um índio brasileiro, o sentimento de luto que passa é universal.” Chuva conta duas histórias em uma. O índio que descobre estar virando pajé, e teme por isso. Ele foge para a cidade, busca tratamento no SUS. Teme estar morrendo, e diz que, se isso ocorrer, será culpa da funcionária que o atende. A mulher segue-o com o filho. Não se adaptam. Ela lhe diz “vamos voltar, esse não é nosso mundo.”

Olhar respeitoso. Longa segue o rimo e a aura dos indígenas Foto: EMBAÚBA FILMES

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Essa é parte da história de Ihjac Krahô, o protagonista. Na outra, aos pés de uma cachoeira, ele chora a morte do pai. Ouve sua voz, pedindo-lhe que organize uma festa de luto. “Os Krahôs têm uma relação muito interessante com a morte”, explica Renée. Acreditam que, sem a festa de despedida, os espíritos dos mortos continuam rondando os vivos, e isso não é bom para a comunidade. Após o luto, eles partem e a vida segue.” 

Um filme sobre a vida, portanto, e belo. Curiosamente, mortos e espíritos também coexistem com os vivos em Los Silencios, outro filme em cartaz, e que também estava em Cannes, no ano passado, na Quinzena dos Realizadores. A floresta é personagem de Los Silencios, realizado por outra mulher, Beatriz Seigner, que filmou numa ilha que permanece submersa parte do ano, na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. São filmes impregnados por uma estranha poesia, ou mistério. Chuva foi rodado ao longo de nove meses na aldeia indígena krahô Terra Branca, no Tocantins. Como seria muito complicado filmar a festa a que o filme se refere, Salaviza e Renée filmaram diferentes comemorações, em diferentes momentos. Inverno e verão diferenciam-se pelas chuvas. A paisagem muda, mas nada que o cinema, com sua montagem, não consiga tornar verdadeiro aos olhos do público. 

“A gente não inventou nada do que filmou, mas as coisas não aconteceram exatamente do jeito que a gente filmou”, explica Renée. O pai de Ihjac, por exemplo, é vivo e agora diz que, na tribo, brincam com ele e o tratam como fantasma. Seria complicado tentar enquadrar Chuva como gênero, até para os diretores. Ficção, documentário? “Às vezes trabalhamos de forma bem clássica, com uma decupagem detalhada, mas houve momentos em que a câmera caminhava como um espírito krahô, e a gente ia. Não sabemos o que é o Chuva, mas é um filme, com certeza.”

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Depois da faculdade, Salaviza chamou Renée para ser sua assistente no longa A Montanha. Terminaram esgotados, mas ele a acompanhou quando ela voltou à aldeia krahô. Foi uma descoberta, mas o projeto do filme não nasceu em seguida. Foi sendo decantado. “Se a gente pensar no Brasil dos últimos anos, no Brasil atual, contra toda a adversidade, o movimento negro e o das mulheres foram adquirindo força, mas os índios permanecem esquecidos”, lamenta Renee. E é um mundo tão complexo e rico. Apichaptong Weerasethakul, o grande autor tailandês de filmes como Mal dos Trópicos e Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, disse certa vez ao repórter que a selva é muito sensual e é preciso perceber isso ao filmá-la. Salaviza e Renée percebem. “É curioso você contar isso. Mostramos o filme para plateias de índios e eles nos disseram que, embora brancos, tivemos uma escuta sensível para a floresta”, conta Salaviza. 

Imagens e sons. Um mundo misterioso que fascina. O canto de um pássaro, em três pios, pontua o relato. “Não tínhamos a mínima noção, escolhemos pela sonoridade, mas aí os índios nos disseram que é o pássaro que antecipa a morte.” Uma amiga de Renée levou o filho pequeno para ver o filme. “Ele ficou siderado, fez muitas perguntas. O filme tem camada para todos os públicos, é o que estamos descobrindo.”

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