Sidney Poitier: um radical amoroso

Os filmes que estrelou tiveram papel na crítica ao racismo, muito pela figura carismática do ator

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

No calor da batalha pelos direitos civis dos anos 1960, Sidney Poitier já estava lá, na frente antirracista, com filmes como Adivinhe quem Vem Para Jantar e Ao Mestre com Carinho, ambos de 1967. Sua figura imponente (quase 1,90m de altura) era modulada por uma postura quase doce, como a sugerir um meio termo entre a radicalidade de um Malcolm X e a não-violência de um Martin Luther King.  Antes desses dois filmes, Poitier já se consagrara com Uma Voz nas Sombras (1963), de Ralph Nelson, sendo o primeiro ator negro a ganhar um Oscar. Naquela década confusa e dilacerada, este era um reconhecimento e tanto. Uma porta do mundo branco que se abria. Poitier, junto com outros grandes artistas negros, como Harry Belafonte, surge como representante desse processo.  Ainda estava longe um tempo em que um Spike Lee podia abrir todas as cartas da intolerância na mesa e lançar um filme tão poderoso como Faça a Coisa Certa (1989), logo no início de sua carreira. Na radical década de 1960, por paradoxo, havia que se buscar soluções de compromisso, pelo menos no cinema. 

O ator Sidney Poitier na festa do Oscar darevistaVanity Fair em West Hollywood, California, 2014. Foto: REUTERS/Danny Moloshok

Assim, em Adivinhe quem Vem para Jantar, parte-se de uma situação conflituosa - a moça branca que leva o namorado negro para conhecer os pais- para uma solução entre as partes. Em Ao Mestre com Carinho, uma classe indomável, em Londres, por fim reconhece no mestre negro a figura paterna de que ecessitava.  Conciliação? Sim. Mas não há por que subestimar esses filmes, ou chamá-los de “datados”. Eles expressavam o que podiam, em sua época. Se ignorar o fato traumático do racismo era impossível, a solução negociada aparecia como a melhor saída. Malcolm X fora assassinado em 1965 e o Doutor King em 1968. A sociedade norte-americana vivia dividida, com os conflitos internos agravados pela Guerra do Vietnã. Naquele mesmo ano de 1967, outro grande ídolo negro, Muhammad Ali, recusou-se a ir para a guerra, e perdeu o título de campeão.  Por apaziguadores que fossem, esses filmes tiveram seu papel na crítica ao racismo, e muito pela figura carismática de Sidney Poitier. Sem esse grande ator, os filmes seriam outra coisa e não produziriam o mesmo efeito cultural.  Efeito, lembre-se, que não se restringia aos Estados Unidos. Dada a projeção global do cinema norte-americano, Poitier e seus filmes tornaram-se figuras internacionais. Eram muito conhecidos aqui mesmo no Brasil, onde, segundo nossa antiga tradição de jogar os problemas para baixo do tapete, ainda se negava o racismo. As gerações daqueles anos viam os filmes e imaginavam que nada daquilo aconteceria por aqui. Ou melhor, talvez sentissem aquele mal-estar difuso provocado por uma negação malfeita da realidade. Acontecia sim, só que ninguém falava nada.  Anos depois as lutas antirracistas se intensificaram, nos Estados Unidos e no mundo, em especial após o assassinato de Georges Floyd e o movimento Black Lives Matters (Vida Negras Importam). O movimento ampliou-se e ganhou mundo em busca do consenso social de que o racismo é intolerável, em qualquer parte e sob qualquer circunstância.  À luz dessa nova radicalidade, esses filmes antigos podem ser vistos como ingênuos. Mas isso seria um anacronismo - ver o passado com os olhos do presente. Seria um grande erro subestimar o papel de Sidney Poitier nesse processo de longa duração que atinge talvez sua culminância nos dias de hoje, mas que começou lá atrás, com gente corajosa e determinada.  

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