O longa Som da Liberdade, da pequena produtora americana Angel Studios, lidera por duas semanas seguidas as bilheterias no Brasil. Com aproximadamente 1 milhão de ingressos computados pela Comscore, empresa que fornece dados às produtoras e distribuidoras, o filme superou franquias como Jogos Mortais X e A Freira 2.
O filme atraiu caravanas de PMs e religiosos. Segundo uma oficial da Polícia Militar de Florianópolis, “todos os policiais do curso de formação de sargentos” foram levados “para prestigiar a estreia”. Na última semana, vídeos publicados nas redes sociais mostraram dezenas de cristãos, orando antes de entrar na sala de cinema.
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A produtora afirma, com orgulho, que seu filme vem sendo visto por milhões de pessoas em todo o mundo. “O filme #1 dos Estados Unidos”, afirma o trailer.
Mas na prática, no Brasil, há margem para dúvidas. O número de ingressos computados não indica necessariamente, quantas pessoas assistiram ao filme; principalmente graças a uma prática incomum adotada pela produtora. Entenda a seguir.
Distribuição gratuita de ingressos pode inflacionar números
Como foi noticiado pelo Estadão após estreia do filme, Som da Liberdade está contando com uma grande divulgaçao de distribuição de ingressos gratuitos. No site da produtora, é possível gerar livremente um código para assistir ao longa, sem pagar.
Geralmente, ingressos de filmes podem ser adquiridos de graça mediante a compra de outro produto ou em ações de marketing de marcas. No entanto, a produtora de Som da Liberdade não exige qualquer ação para que você assista ao filme; basta entrar no site e solicitar. É possível emitir dois códigos por vez, mas não há limite de vezes.
Em seguida, é necessário inserir o código em um portal de compra de ingresso e reservar um assento em uma sessão, o que é compreendido pelo sistema como bilhete emitido.
“Um anjo pagou adiantado para que você possa assistir a Som da Liberdade nos cinemas gratuitamente”, informa o portal, que não especifica quem teria bancado esse ingresso. Qualquer um também pode participar do chamado “Pay It Forward”, que, segundo o site, é a iniciativa de pagar bilhetes para outras pessoas.
No entanto, essa prática não é comum e pode gerar incongruência nos dados.
Segundo representante da Paris Filmes, que distribui o longa no Brasil, a disponibilização de ingressos gratuitos é feita diretamente pela Angel Studios, como parte de uma ação em que “pessoas podem comprar ingressos para outras que não podem”, o que é “a mesma ação de promoção que fez no exterior”. No site do filme, também é possível solicitar ingresso sem custo “se não for possível arcar com o valor”.
O Estadão também procurou a Angel Studios, mas não houve resposta. O espaço segue aberto.
O que dizem os dados de bilheteria?
O OCA (Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual), órgão pertencente à Ancine, informou ao Estadão que o Sistema de Controle de Bilheteria monitora somente a emissão de bilhetes, sejam eles de preço inteiro, meia-entrada, cortesia ou promocional. Todas as modalidades são passíveis de contabilização.
Uma porta-voz da Comscore corroborou a informação, relatando que os dados de público fornecidos por eles se referem apenas à compra de ingressos; não a quantas pessoas de fato compareceram às salas de cinema.
Por isso, os números obtidos podem estar inflacionados. Se a emissão de ingressos é tão fácil, muitas pessoas podem ter solicitado seus bilhetes gratuitos (ou gerado para terceiros, individualmente ou para grupos de caravanas) sem ter necessariamente comparecido.
Assim, não é possível determinar quantas pessoas assistiram à produção nos cinemas.
O site da Angel Studios também fornece uma informação de “bilheteria total” do filme, mas se baseia no mesmo princípio. Segundo o portal, o valor é “uma estimativa baseada em compras de bilheteria” e os ingressos da iniciativa “Pay It Forward” só são inclusos no total “quando um ingresso gratuito é reivindicado para assistir ao filme nos cinemas”.
Segundo a Angel, mais de 22 milhões de ingressos foram solicitados para o filme no mundo.
Filme teve polêmicas também nos EUA
Esse marketing pouco convencional não é exclusivo ao Brasil. Nos EUA, as táticas emotivas da produtora para chamar atenção para o filme também foram motivo de polêmica.
No final do trailer, há um clipe onde o ator protagonista, Jim Caviezel, se dirige diretamente ao público e incentiva os espectadores a pré-encomendarem seus ingressos para “enviar a mensagem de que os filhos de Deus não estão mais à venda”.
Ele também aparece na tela no final do filme, para incentivar o público a participar do programa “Pay It Forward”.
Portanto, a polêmica dos números possivelmente inflacionados também estava presente nos Estados Unidos. Nas redes sociais, espectadores chegaram a compartilhar imagens das salas de cinema com poucas cadeiras preenchidas. Também não é possível precisar quantas pessoas estavam de fato vendo o filme nos EUA.
A polêmica lembra a estreia de filmes religiosos no Brasil, como Nada a Perder, em que a bilheteria milionária contrastou com algumas salas vazias.
O longa, por si só, também é controverso. O filme é inspirado na história de Tim Ballard, ex-agente especial de Segurança Nacional nos EUA que atuou contra uma rede de exploração sexual infantil. No entanto, o próprio Ballard foi acusado de assédio sexual. Segundo a revista Vice, ele foi acusado por sete mulheres de coagi-las a dormir na mesma cama ou a tomar banho com ele.
Para a esquerda norte-americana, trata-se de uma história que fortalece teorias conspiracionistas de extrema direita.
Som da Liberdade se tornou querido entre nomes republicanos, como Jordan Peterson, o comentarista político Ben Shapiro e o próprio ex-presidente Donald Trump, que teria exibido o filme em seu clube de golfe. No Brasil, a pré-estreia teve a presença de Eduardo e Flávio Bolsonaro, Damares Alves e Carla Zambelli.
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