Sempre foi uma missão, desde que os dias em que os sonhos do empresário norte-americano Alexander Schure saíram de sua área de pré vida, em 1974, e começaram a descer ao mundo jogando-se pelo portal que traz ao planeta todas as formas humanas, de vidas e de sonhos. À frente do New York Institute of Technology (NYIT), Schure queria realizar o primeiro filme animado por computador do mundo e começou a recrutar pessoas que vislumbrassem da mesma, mais uma vez, missão: uma expansiva missão de 15 milhões de dólares empregados às custas da saúde financeira do NYIT. Até o dia em que seu braço direito, Edwin Catmull, o deixou para trabalhar com George Lucas na Lucas Film, onde conheceria toda a equipe de computação gráfica que, em 1986, seria financiada por Steve Jobs para, enfim, criar a Pixar, uma empresa cheia de, e aqui estão elas de novo, as missões.
Ou seja, Soul, o filme que tem feito adultos chorarem à frente de crianças que se perguntam por que seus pais ficam assim vendo cenas tão prosaicas quanto a de um pianista tocando sozinho na sala de casa, é fruto daquilo que aparece em sua própria trama como algo a ser combatido no mundo pós-pandêmico: a necessidade inexorável e vital da missão. É essa maldita, nas entrelinhas de Soul, a culpada pela Era do Vazio, uma das maiores catástrofes humanas por trás da aflição, da culpa, da angústia, das ansiedades, da depressão e, no final de toda a linha de montagem das crianças e jovens mais tristes da história, o suicídio. Exigir dos filhos a escolha imediata de uma missão disposta no cardápio da vida, uma lista breve que começa em Administração e acaba em Zootecnia levando em consideração não mais do que uns 20% do total das habilidades humanas, só apertaria ainda mais esse reio e iniciaria o processo da eterna frustração. Felizes aqueles que descobriram suas missões (e que têm pais que conseguem pagar por elas). Aos fracassados que ainda não sabem o que fazer da vida, restam as migalhas do subemprego e a sensação de terem vindo ao mundo com um defeito de fabricação. Serão eles os eternos marginais.
Nada disso está literalmente em Soul, mas o potencial de reflexões do filme é tamanho que muitas outras podem ser feitas. O que de fato está em seus 101 minutos de duração, sem spoilers além da sinopse, é o seguinte: Joe Gardner é um talentoso porém cansado professor de música do ensino médio que sonha em ser um pianista de jazz. Os alunos aparecem em sua aula desanimados, zombeteiros e desestimulados. Um dia, sua grande chance aparece, mas, então... Ele, ou sua alma, vai parar em um lugar de trânsito que comporta basicamente três departamentos distintos: um para as pessoas que não nasceram ainda, outro para as pessoas que já morreram e um terceiro, o mais genial desses missionários da Pixar (tem uma dificuldade aqui em chamá-los de Disney mesmo sabendo que foram comprados há anos pela empresa do Mickey): um lugar que recebe os espíritos desprendidos dos músicos, atores, bailarinos e todos os artistas que entram em transe durante seus solos e saem de seus corpos por alguns minutos. Viciados em drogas lisérgicas também vão parar aqui, mas para eles há uma frase ótima de um dos personagens.
Gardner (que tem no áudio original a voz de Jamie Foxx) precisa concluir sua missão ao mesmo tempo em que uma alminha amiga que vem à terra com ele, a 22 (personagem com a voz de Tina Fey), não tem nada a se apegar para chamar de propósito de vida. Uma única cena precisa ser descrita aqui, e ela não será spoiler porque não tem impacto na trama: cansado, Gardner senta-se ao piano solitário em sua sala escura. Ao remexer nos bolsos, tira alguns objetos que veio guardando em situações diferentes de seu dia cansativo e sem propósito. Uma semente voadora de Bordo, uma borda de pizza velha, um pirulito e uma rosquinha mordida. Ele tira então a partitura que estava na estante do piano e, em seu lugar, coloca esses restos para olhar para eles e tocar uma música linda criada ali mesmo, inspirada por seus pedacinhos de vida. A discussão dos prejuízos da ideia da missão humana recai ainda com mais força na personagem 22, mas aí seria contar demais.
A forma como os seres humanos foram reduzidos a missões individuais suscita questionamentos filosóficos pelo menos desde a Revolução Industrial do século 18, quando as grandes cabeças iluministas formadas em quantas habilidades fosse possível administrar pela vida começaram a ser trocadas pela ideia da especialização. Ou seja, o que chamaríamos hoje de gênio, alguém com formação em História Grega, Matemática, Medicina e Biologia, além falar três idiomas, tocar cravo e lira e praticar carpintaria nas horas vagas, era o comum, não a exceção. Uma bagagem que era adquirida pela vida inteira, e não apenas por um período compreendido entre os 18 e 25 anos – a idade universitária média de hoje, quando um único portal se abre para separar os “bem sucedidos” dos “fracassados”. Isso até o pensamento industrial mudar tudo: homens de visões holísticas teriam conhecimento demais para trabalhar em linhas de produção. Assim, por força da construção da nova ordem do capitalismo, era preciso reduzi-los a algo mais prático, mais produtivo e, na visão dos Estados, menos reflexivo.
A ideia da missão é um deleite da era industrial que se beneficiou ao descobrir que os homens contratados para seus parques de produção já vinham com elas implantadas no cérebro. Afinal, de Jesus Cristo a Malcom X, todos, políticos, papas, empresários, policiais, traficantes e assassinos sãos ou loucos, a ponto de serem lembrados por uma voz de sua tarefa, “mate John Lennon”, ou de levarem a cabo sua meta de erradicar o povo judeu do planeta, todos são produto de alguma específica missão. As religiões fecharam o cerco e cobraram dos viventes a execução de uma segunda missão, esta espiritual, e que, nem sempre, tem a ver com a terrena. Vale quase que como uma segunda chance: se tudo fracassar na terra, apegue-se à missão dos céus.
Desta vez, não se trata de uma questão impetrada apenas pela Igreja Católica, uma das maiores irradiadoras de missões terrenas e celestiais do planeta. Se correr em busca do iluminismo espírita, o agoniado ouvirá que ele tem uma missão a cumprir na terra para pagar contas trazidas de vidas passadas. Se for aos orixás, poderá ouvir que sua mediunidade é tão forte que ela precisa ser trabalhada e entregue à comunidade como uma missão. Os radicais islâmicos estão prontos para entregarem suas vidas e a de quem estiver a seu lado no lugar e na hora errada por missões divinas e os budistas, em uma das mais belas missões pré determinadas por uma doutrina, pregam que as pessoas devem purificar-se para livrarem-se a si e a quem os rodeia dos mesmos sofrimentos.
Aliviar o peso das missões para podermos voltar a enxergar a beleza dos dias é uma proposta de Soul que apenas parece ingênua. De olho no novo mundo e nos novos valores que existirão no pós-Vazio, o filme de Pete Docter é o primeiro ato da indústria cultural sintonizado com os vivos que agora lutam para fazerem suas travessias a salvo até chegarem ao outro lado do rio, dobrarem suas mangas de camisa e tomarem a vacina. No conjunto das relações históricas a se viver no novo tempo, as religiões que sofriam com a fuga de fiéis estarão novamente fortalecidas depois de um ano de orações, promessas e muitas “voltas às raízes” de um rebanho reespiritualizado à força pelo medo da morte. Mas o que Soul traz, e o que os livros sagrados não têm, é um pouco de poesia, de leveza, de humor e um pedido para olharmos para a vida apenas por olharmos para a vida.
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