A princesa Diana pode ter morrido, mas nunca deixou de atrair a atenção do público. Um dos exemplos mais recentes veio na 4ª temporada de The Crown, a popular série da Netflix que, desde 2016, vem conseguindo retratar a humanidade da realeza britânica – em todos os seus tons de cinza – e vincular a instituição da monarquia aos medos e desejos de nós, plebeus.
No caso do mais recente retrato de Diana nas telas, é melhor deixar uma coisa bem clara: Spencer, na maior parte do tempo, não chega a sondar esses mesmos momentos de conexão com a Casa de Windsor. O retrato cinematográfico de Diana Spencer, do diretor Pablo Larraín (Jackie), que estreia no dia 11 nos cinemas brasileiros, é abordado com um ceticismo saudável. A saber: os membros da família real não são nada mais do que seres cruéis e privilegiados cujos espíritos ainda assombram a Terra, muito depois de terem tentado dominá-la.
Nas mãos de Larraín, trabalhando a partir de um roteiro de Steven Knight (Locke) e estrelando a atriz Kristen Stewart no papel-título, a história chega à sua protagonista como se ela estivesse presa no Overlook Hotel de O Iluminado.
O verdadeiro cenário de Spencer é 1991, no Palácio Sandringham, o retiro de Natal da rainha, onde Diana chega à beira do colapso emocional, não apenas por causa da infidelidade de Charles, mas por causa das amarras da tradição e das obrigações.(Qualquer espectador em busca de alguma reconstituição histórica fiel provavelmente vai recuar diante do título de abertura na tela: “A fábula de uma verdadeira tragédia”).
Stewart crava os dentes no papel de uma mulher torturada, solitária, confinada. Como ela demonstrou no filme de arte Personal Shopper, a atriz se sai muito bem quando “assombrada”. Aqui, sua atuação altamente sintonizada não consiste apenas em evocar os olhos expressivos de Diana, mas em sua fisicalidade, batendo os pés – ou a ponta dos pés – pelos grandes corredores e jardins exuberantes de uma propriedade que ela nunca chamará de lar. Para um filme que se apresenta com bastante maquiagem, Spencer lida com as batalhas de Diana contra a bulimia e a automutilação por meio de alguns trechos de horror corporal habilmente surpreendentes e eficazes.
A trilha sonora de Jonny Greenwood, do Radiohead – piano dissonante e trompetes de jazz meio lounge – evoca a erosão do estado mental de Diana e provavelmente deixará você tão atormentado quanto a protagonista.
A experiência de Larraín com Jackie, outro vislumbre da mente de uma mulher alienada sob os holofotes, é muito útil para ele. Como naquele filme de 2016, temas de criação de mitos e identidade – o que acontece quando seu senso de identidade é subsumido pelo bem maior? – são postos sob o microscópio. O filme não se destaca por glamourizar a aristocracia. Em vez disso, Larraín e a cinegrafista Claire Mathon direcionam sua atenção para os trabalhadores que sustentam esse conto de fadas.
Entre os poucos aliados de Diana se encontra sua camareira (Sally Hawkins) e um chef (Sean Harris). Timothy Spall, no papel do estribeiro dos Windsor, encarregado da casa real e novo inimigo de Diana, parece espreitar em cada canto do palácio, só ouvindo e observando.
Mas se Spencer tem estilo e atuações de sobra, esses pontos fortes não são correspondidos pelo roteiro do filme, que é abertamente exagerado e salpicado de metáforas sobre cavalos selvagens que precisam ser libertados – ou mesmo sobre o faisão, descrito como um belo pássaro que só serve para ser caçado. Uma subtrama em que o fantasma de Ana Bolena (decapitada por Henrique VIII) atua como guia espiritual de Diana não ajuda nada. Knight continua lançando prenúncios da morte prematura da princesa – como se alguém tivesse esquecido.
Algumas das passagens mais silenciosas do filme, focalizando o corpo de Diana, parecem uma propaganda de Chanel nº 5.
Ainda assim, quase tudo funciona. Talvez seja porque o fardo da celebridade é tão insano, tão enfadonho que só pode ser expresso por meio do melodrama. Diante de tantos longas biográficos que aparam as arestas mais ásperas, perpetuando a divinização da personalidade retratada, é revigorante assistir a um filme que não tem medo de bagunçar as coisas. Para o bem e para o mal, Spencer transmite algo bem forte: a sensação de viver num mundo rarefeito e indiferente que não parece valorizar mulheres independentes, muito menos pessoas. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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