Quando O Rito da Dança estreou no Festival Sundance de Cinema, em janeiro de 2023, tudo parecia encaminhado para o sucesso do filme - era a estreia em longas de uma diretora promissora, tinha grandes atuações e foi aclamado pela crítica. Só faltou uma coisa: uma distribuidora ou estúdio que pudesse, de fato, levar o filme ao grande público.
Meses se passaram e a diretora Erica Tremblay (que escreveu o roteiro com Miciana Alise) parecia achar que não haveria uma saída. As conversas com estúdios e streamings não iam para frente. As duas chegaram a escrever um artigo para o The Hollywood Reporter sobre as dificuldades de distribuir o filme.
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Até que Assassinos da Lua das Flores, filme de 2023 de Martin Scorsese, foi lançado com todo o burburinho que envolveria um longa do aclamado diretor e, claro, rendendo uma indicação ao Oscar para uma atriz até então desconhecida (apesar de não ser novata): Lily Gladstone. Naquele ano, ela também estrelava outro filme fortemente ligado às suas origens indígenas: O Rito da Dança.
A indicação de Gladstone deu uma sobrevida ao longa de Tremblay. Todos queriam ver mais trabalhos da atriz. De repente, histórias com representatividade dos povos originários eram interessantes à indústria do cinema. Assim, após negociações, o filme teve os direitos de distribuição comprado pela Apple (que também distribuiu Assassinos). É em meio a este contexto que o filme chegou ao streaming da empresa, o Apple TV+, na sexta-feira, 28.
“Acho que o mundo está pronto para [esse filme] de uma forma que não estava no ano passado. E é realmente incrível ver isso se tornar realidade. Nós sabíamos o quanto ele é importante e especial. E agora é emocionante ver todos embarcarem nesse trem conosco”, diz Lily Gladstone ao Estadão, em uma mesa redonda com jornalistas internacionais.
Ela credita isso ao filme de Scorsese, que, segundo ela, deu uma “oportunidade que o público não tem tido com frequência, se é que alguma vez teve, especialmente em um filme tão grande como esse, de realmente se apaixonar por mulheres indígenas e querer mais disso”. A história a que ela se refere, e na qual atuou, retrata o assassinato em série de membros da nação indígena Osage, rica em petróleo, no início da década de 1920, nos Estados Unidos.
“Ter O Rito da Dança imediatamente depois parece - e é - uma continuação da mesma conversa 100 anos depois, com suas lentes focadas mais profundamente no que é esse relacionamento matrilinear e no amor”, diz Gladstone.
Sobre o que é ‘O Rito da Dança’?
A atriz diz que é uma continuação, pois O Rito da Dança trata de temas semelhantes, apesar de fazer isso em um ambiente diferente. Ambientado na reserva indígena Seneca-Cayuga, no estado americano de Oklahoma, nos dias atuais, o filme segue Jax (Gladstone), que tenta pressionar as autoridades policiais para aumentarem as buscas por sua irmã recém-desaparecida. Ao mesmo tempo, ela precisa cuidar da sobrinha, Roki (Isabel Deroy-Olson), que espera que a mãe reapareça a tempo do powwow, a tradicional reunião dos povos indígenas da América do Norte.
A inspiração para a história veio quando a diretora Erica Tremblay (que só havia trabalhado em documentários e episódios de série até então), estudava a língua Cayuga, o idioma original do povo indígena Seneca-Cayuga, do qual ela faz parte. “Fui inspirada a imaginar um mundo moderno em que jovens como Jax e Roki falassem o idioma fluentemente. E levamos isso muito a sério”, explica ela.
Mesmo que o filme fale do desaparecimento e assassinato de mulheres indígenas - um problema crônico em comunidades de toda a América - Tremblay queria que o filme tivesse momentos de leveza e não explorasse ou revivesse os traumas de sua comunidade. “Foi difícil ter esse equilíbrio porque, por exemplo, há elementos de suspense que são realmente emocionantes no filme. Mas queríamos ter certeza de que não estávamos mercantilizando [esse sofrimento]”, diz.
Depois de estrear em Sundance, a cineasta passou meses buscando uma forma de lançar o longa. “Sempre foi um processo difícil conseguir a distribuição de filmes indígenas e de filmes independentes. Eu tinha essa história queer [a personagem de Gladstone faz parte da comunidade LGBT+] de uma tia e uma sobrinha em uma paisagem indígena americana, e sabia que não seria fácil. Mas eu sou o tipo de pessoa que continua insistindo e insistindo”, afirma ela.
Talvez seja apenas parcialmente positivo que foi o filme de um homem branco e bem-sucedido que tenha feito Hollywood abrir os olhos para histórias como essa, mas Tremblay reconhece a importância de Assassino da Lua das Flores e o “empurrão” que ele deu para seu filme. Não só para ele, aliás, mas para outros cineastas e atores indígenas que buscam espaço na indústria cinematográfica.
“A indicação ao Oscar foi um momento muito importante. Ver Lily nos tapetes vermelhos e naquele espaço, ao lado de todos os atores indígenas de Assassinos, foi extremamente significativo. Acho que não apenas em nossas próprias visões de como o futuro pode ser, mas também na abertura de portas para o financiamento de nossos projetos e para acordos de distribuição de filmes como O Rito da Dança”, diz.
Para Gladstone, que também foi uma das produtoras do filme, O Rito da Dança continua tão importante quanto era há um ano e meio. Ela usa palavras de Scorsese para explicar como se sente: “Martin estava falando sobre assistir a Assassinos da Lua das Flores e como esse é um dos únicos filmes que ele fez que ele pode simplesmente sentar e assistir - e gostar de assistir. Ele realmente gosta de seu filme. Ele se diverte com ele. O mesmo se aplica a O Rito da Dança para mim.”
Para a estreante Isabel Deroy-Olson, que faz o papel da sobrinha, não é diferente: “Depois da estreia, fui falar com minha mãe e disse: ‘Nunca tive 100% de orgulho de nada, mas estou 100% orgulhosa desse filme’. Eu esperava que isso mudasse um pouco no último ano, mas não mudou. Estou muito orgulhosa dele e acho que é um filme muito importante e que muitas pessoas vão se identificar e já se identificaram com ele. Isso, por si só, é muito gratificante.”
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