CANNES - Foram 11 dias de descobertas, encantamento – e algumas decepções -, mas principalmente foi um período para se discutir o cinema na era do streaming, pós-pandemia. Ocorreram debates acirrados – o cinema, como linguagem, está em vias de acabar? O que fazer para levar o público de volta às salas? Acima de tudo, foram 11 dias de apreensão.
Duas vezes vencedor da Palma de Ouro, por The Square – A Arte da Discórdia e Triângulo da Tristeza -, o diretor sueco Ruben Ostlund não é o que se poderia chamar de 100% confiável. Ele questiona a correção política numa perspectiva cínica.
Grandes diretores como os italianos Marco Bellocchio e Nanni Moretti, o finlandês Aki Kaurismaki e o britânico Ken Loach – todos veteranos na competição -, voltaram a Cannes com filmes que reafirmam humanidade, solidariedade. Não é um discurso fácil de se levar hoje em dia. A grande pergunta é: quem levará a Palma de Ouro na noite deste sábado, 27?
O festival foi inaugurado na terça, 16, com o longa dirigido e interpretado por Maïwenn sobre a favorita do rei Luís XV, Jeanne du Barry. Foi somente há 11 dias, mas a lembrança parece distante. Não é um filme nulo, mas também carece de elementos para permanecer vivo – e forte – no imaginário dos cinéfilos.
Numa coletiva na abertura do festival, o responsável pela seleção oficial, Thierry Frémaux, negou veementemente que existisse um tema a unir os filmes da competição. Disse que a escolha dele não se faz por aí. Ele fez sua seleção baseado na qualidade, e diversidade. Mas a verdade é que atravessa toda a seleção a já assinalada conversa sobre o futuro do cinema.
Em 2000, quando o festival ingressava no século 21, houve aqui um seminário para discutir as novas tecnologias. Na era do digital, o cinema iria mudar? E se mudasse o suporte, ainda seria cinema? Naquele ano, só para lembrar, o júri presidido por Luc Besson outorgou a Palma de Ouro a Dançando no Escuro, do dinamarquês, ex-Dogma, Lars Von Trier. Passaram-se 23 anos.
Foi o tempo ou pandemia – ela! – que mudou tudo? Por segurança, ou o quê, o grande público desacostumou-se de ir ao cinema. Muitas gente só vê hoje os filmes nas plataformas. Os blockbusters seguem atraindo multidões. O cinema autoral, que os franceses chamam de arte/ensaio, atrai muito menos.
Mesmo num grande festival, como Cannes, dá para perceber a mudança comportamental. Em casa, as pessoas veem filmes com o celular na mão, ou levantando para ir à cozinha, ao banheiro. A fruição – a projeção dentro do filme – parece importar cada vez menos. Apesar dos insistentes avisos antes das sessões – desliguem seus celulares -, as telas iluminadas são uma realidade durante todas as sessões.
Os mestres – Bellocchio, Kaurismaki e Moretti – vieram defender os filmes para passar nos cinemas. O próprio Bellocchio diz que há uma diferença grande entre sua obra-prima deste ano – Rapito – e a sua série do ano passado, Esterno Notte/Noite Exterior.
Houve filmes marcantes nesta seleção. Duplamente – pelo tema e pela realização. A adaptação de A Zona de Interesse, de Martin Amis, por Jonathan Glazer, recolocou o tema do Holocausto em evidência. Recolocou? A solução final do nazismo é uma questão a atormentar as consciências – de quem tem. O comandante de Auschwitz leva o que se pode considerar uma vida ‘normal’ na casa junto ao campo de extermínio. Glazer leu direitinho seu Amis, mas também as considerações de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal.
Anatomie d’Une Chute, de Justine Trier, provocou sensação entre os mais jovens. A escritora suspeita de haver matado o marido. O caso é investigado, vai a julgamento.
Antes Justine Trier do que Jessica Hausner. Com Club Zéro, corre-se o risco de agradar ao presidente do júri, M. Ostlund. Uma nutricionista dá aulas de correção alimentar. É preciso estômago para aguentar esse filme, mas O Triângulo da Tristeza também tinha vômitos e diarréia, lembram?
Um grande senhor do cinema, o turco Nuri Bilge Ceylan, voltou com Les Herbes Sèches, outra investigação sobre o tempo. Um casal de professores, uma aluna. Elogiar a beleza visual e o controle do espaço/tempo no cinema de Ceylan é, como se diz, chover no molhado A questão é – terá respaldo no júri?
No chapliniano – o final é uma homenagem a Tempos Modernos – Les Feuilles Mortes, Aki Kaurismaki mostra o complicado processo de aproximação de um casal. Nada mais do que isso, mas vendo o filme o público dá-se conta de que já é tudo.
Wes Anderson, com Asteroid City, e May December, de Todd Haynes, foram decepções, mas ganharam muitas – até demais – estrelas nos quadros de cotações dos críticos.
Na contrapartida, La Passion de Dodin Bouffant, de Tran Anh Hung, foi defenestrado nesses quadros. A história do chef contada com extremo requinte e beleza, e Benoit Magimel e Juliette Binoche, que já foram um casal na vida, em estado de graça.
E o que dizer de Ken Loach? O drama dos refugiados em The Old Oak. O filme é uma utopia, como o de Nanni Moretti, Rumo a Um Futuro Radioso. Moretti conta a história de um filme dentro do filme. Celebra o comunismo com todas as bandeiras vermelhas que se possa imaginar. E Loach? A solidariedade atravessa essa história num espaço sagrado para os ingleses, o pub.
Diretor brasileiro
E Karim Aïnouz? Em sua estreia no cinema de língua inglesa, o diretor brasileiro pode não ter atingido a unanimidade, mas tem um monte de gente apostando em Alicia Vikander e Jude Law para os prêmios de interpretação.
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