PUBLICIDADE

Um Brasil em transe na primeira noite do Festival de Brasília 2022

‘Mato Seco em Chamas’, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, ganhou a plateia com força sensorial e conteúdo político

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio

BRASÍLIA - Um filme-bomba abriu a 55.ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Mato Seco em Chamas (DF), de Adirley Queirós e Joana Pimenta, ganhou a plateia do Cine Brasília com sua força sensorial e também com seu conteúdo político. Nada didático, aliás, mas que joga na tela um Brasil pós-distópico, irrespirável mas cheio de vitalidade, visto pelo olhar da periferia.

PUBLICIDADE

No caso, o olhar da Ceilândia, uma das cidades-satélites de Brasília. É lá que se ambienta a história, ou melhor, a lenda das “gasolineiras” Léa, Chitara e Andréia, que descobrem petróleo na quebrada onde vivem, passam a refiná-lo e vendê-lo aos motoqueiros locais. As personagens são interpretadas por atrizes “naturais”, mas seria um erro, diz Adirley, dizer que vivem a si próprias. “São atrizes mesmo, grandes atrizes e não falam simplesmente de suas vidas, mas as inventam”, diz o diretor.

O filme é bastante complexo e torna obsoleta a separação entre ficção e documentário. É uma coisa ou outra e, com frequência, as duas ou nenhuma delas. Instala-se num campo mítico, da invenção de uma narrativa com vocação para se tornar lenda no futuro. Incorpora cenas de uma das personagens num culto evangélico, cenas de bolsonaristas comemorando a eleição do seu “mito” em 2018 e as mescla a diálogos ficcionais entre as atrizes. Em particular entre Chitara e Léa, que são meia-irmãs no filme.


Exibição do filme Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, no Festival de Brasília Foto: @pccavera


Em meio a essa complexidade que não se decifra de cara, o espectador é levado pela força sensorial das imagens e dos sons; e, também, pela naturalidade em que os diálogos entre as personagens desvelam esse Brasil periférico, pouco acessível ao dogmatismo estético das elites e da classe média. Tem-se aí um cinema proletário, orgulhoso de sua origem, e que não se dobra a formas convencionais de filmagem e edição, nem da linearidade ou do bom gosto bem pensante.

Podemos não decifrar de imediato suas falas, imagens e múltiplas camadas. Mas temos certeza de que diante de nós temos essa figura paradoxal e contraditória chamada Brasil. Desconfio que muito ainda há de se falar e escrever sobre esse filme, que já ostenta carreira internacional bastante respeitável. Entre mais de 50 participações em eventos no exterior, esteve no Festival de Berlim e venceu o IndieLisboa e o Cinéma du Réel, na França.

Mato Seco em Chamas é uma obra destinada a polêmicas, e, por isso mesmo, foi um belíssimo ponto de partida para um festival que tem como pontos fortes o engajamento político e a participação sempre calorosa de sua plateia. Depois de dois anos online, por conta da pandemia, volta ao formato presencial e à sua sede, o magnífico Cine Brasília, desenhado por Oscar Niemeyer.

Mato Seco em Chamas disputa os troféus Candango com outros cinco concorrentes: Espumas ao Vento (PE), de Taciano Valério, Rumo (DF), de Bruno Victor e Marcus Azevedo, Mandado (RJ), de João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes, Canção ao Longe (MG), de Clarissa Campolina, e A Invenção do Outro (SP/AM), de Bruno Jorge. Com esses filmes, ao longo da semana aparecerão na tela do Cine Brasília outros temas explosivos como cotas raciais, arbitrariedade policial em comunidades, questões identitárias e religiosas, e ameaças aos povos originários.

Publicidade

O ruído de fundo de um Brasil em transe não se fez ouvir apenas na noite de abertura.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.