‘Um Corpo que Cai’ é o melhor filme de todos os tempos. Ou o pior. Discutam

Polêmico e estranho suspense de Alfred Hitchcock, de 1958, está no streaming; conheça sua história e veja como assistir

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Por Ty Burr

Washington Post - Alguns filmes clássicos não foram apreciados em sua época, levaram anos ou até décadas para virarem clássicos. A Felicidade Não se Compra foi um fracasso até aparecer na TV todo Natal. Diabo a Quatro foi uma bomba dos irmãos Marx até que o pessoal da contracultura o descobriu na década de 1960.

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Um Corpo que Cai teve uma jornada diferente de qualquer outra no cânone. Descartado como um erro de luxo que mal recuperou seu custo nas bilheterias e ganhou dois Oscars “menores” (por design de produção e mixagem de som), o thriller de suspense de Alfred Hitchcock de 1958 continua ganhando nova relevância a cada nova geração de amantes do cinema.

Ao mesmo tempo, é o filmão que mais assusta os espectadores casuais, especialmente desde 2012, quando Um Corpo que Cai derrubou Cidadão Kane do primeiro lugar na pesquisa Sight & Sound dos melhores filmes de todos os tempos, lugar que ocupava havia meio século. É uma imensa responsabilidade para um filme estranho, meio onírico, que parece não fazer muito esforço para facilitar as coisas para o público e que vai ficando mais complexo, mais triste e mais profundo a cada vez que é assistido.

Um Corpo que Cai fez 65 anos este mês – o filme estreou em São Francisco no dia 9 de maio de 1958 – e, agora que chegou à maturidade, pode passar por um balanço. (Além disso, sua reconsideração deve ser impulsionada por um remake com Robert Downey Jr., ainda nos estágios iniciais de produção).

Por que ‘Um Corpo Que Cai’ é tão polêmico?

Mas, enfim, é o melhor filme de todos os tempos (ou o segundo maior, na pesquisa Sight & Sound de 2022) – ou é um tédio fúnebre? É a confissão mais sombria de um diretor ou só mais uma armadilha de Hitchcock? Um tratado misógino ou um retrato da obsessiva masculinidade tóxica décadas à frente de seu tempo?

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Você pode encontrar um bom argumento para fundamentar cada uma dessas opiniões em algum lugar na internet – e provavelmente em um papo quando as luzes se acenderem depois de ver o filme em casa. Por que é tão polêmico? Por que provoca lágrimas de emoção reprimida em algumas pessoas e bufadas de irritação em outras?

Parte do problema (se você achar que é um problema) não tem a ver com o que Um Corpo que Cai é, mas sim com o que não é. Não é Janela Indiscreta – e nem Intriga Internacional, nem Pacto Sinistro, nem qualquer um dos entretenimentos diabolicamente construídos que ainda deixam o público de Hitchcock feliz e agradecido.

'Um Corpo Que Cai', 'Vertigo' no original, estreou em 1958 Foto: Paramount Pictures

Em vez disso, Um Corpo que Cai talvez seja o filme mais estranho do mestre. (Vamos contar todos os votos para Marnie também). Tem um formato esquisito – não convencional, até desconcertante, com aquelas cenas de direção enlouquecedoramente sem rumo em São Francisco e o mistério revelado quando ainda falta um terço de filme. Se o radicalismo estrutural de Psicose – a personagem principal morta antes mesmo da metade do caminho – só aumentou sua eficácia e apelo comercial, a forma narrativa desajeitada de Um Corpo que Cai faz dele um desafio para o público que busca diversão descomplicada.

No entanto, essa forma é necessária para a grande peça que Hitchcock prega no público – o que talvez seja outra razão para o ressentimento. Durante grande parte de seus 128 minutos, Um Corpo que Cai finge ser pelo menos dois filmes diferentes daquele que de fato é. Não é uma história de fantasmas. Não é nem mesmo um mistério de assassinato.

É uma tragédia – uma ópera cinematográfica – sobre um homem tão apaixonado pela mulher que está na sua cabeça que não consegue ver a mulher que está em seus braços. É um filme sobre como tentamos moldar as pessoas que amamos para que sejam pessoas que nunca nos amaram.

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O enredo do filme (com spoiler)

Um Corpo que Cai – alerta de spoilers! – conta a história de John “Scottie” Ferguson (James Stewart), detetive de polícia aposentado que tem medo de altura. Contratado para seguir a esposa de um velho amigo, Madeleine Elster (Kim Novak), aparentemente suicida e tomada por um espírito ancestral, Scottie se vê perdidamente apaixonado, mas não consegue intervir quando Madeleine se joga do alto de uma torre.

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Um ano depois e ainda de luto, Scottie conhece Judy Barton (Novak) e fica obcecado em transformá-la na imagem de Madeleine: compra para ela as mesmas roupas que Madeleine usava e a convence a pintar o cabelo de loiro. Ficamos sabendo que Judy na verdade era Madeleine – ou fingia ser ela, peão involuntário na trama do amigo para matar a esposa. Quando Scottie descobre a verdade, arrasta Judy com raiva de volta para a torre, onde sua vertigem é curada, mas ela cai para a morte.

O final – Scottie sozinho no precipício, a trilha sonora de Bernard Herrmann quebrando ao seu redor feito ondas de tempestade – pode ficar preso na alma de um espectador e na garganta de outro. É o final mais sombrio de Hitchcock e um dos mais sombrios da era dos estúdios. Ressalta a percepção desconfortável de que o detetive não é apenas o herói do filme, nem apenas a vítima. É também quem vitimiza. É o monstro.

Gaslighting e comportamentos tóxicos

Eu diria que isso ficou mais claro ao longo das décadas, à medida que termos críticos como “o olhar masculino” cresceram no debate público e uma geração mais jovem de mulheres tem sido mais franca para falar sobre gaslighting, abuso emocional e outros comportamentos tóxicos dos parceiros.

Por décadas, Um Corpo que Cai foi um filme sobre Jimmy Stewart, mas, fascinantemente, com o tempo também se tornou um filme sobre Kim Novak – sobre uma Judy que quer ser vista e amada por ser quem é, enquanto seu amante só vê nela a mulher que ele perdeu.

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Anna Billson, do The Guardian, estava certa em um artigo de 2018 quando disse que o apelo angustiado da personagem quando o detetive pede que pinte o cabelo – “Se eu deixar você me mudar, será que vai dar certo? Se eu fizer o que você mandar, você vai me amar?” – é uma das falas mais comoventes da história do cinema.

Se o filme é também uma tragédia sobre Scottie é só porque quem o interpreta é Stewart. Qualquer outra pessoa teria deixado o papel insuportavelmente cruel. Mas o amado ator, que desde seu retorno do combate na Segunda Guerra Mundial tinha procurado conscientemente papéis mais enérgicos, entendeu o abismo entre sua personalidade juvenil e a amargura insondável com que Scottie diz a Judy: “Você não deveria ser tão sentimental”. Uma das razões pelas quais Um Corpo que Cai parece tão terrivelmente triste para algumas pessoas é que vemos em Scottie o doce e perdido Jimmy de tempos mais inocentes.

(E Marjorie “Midge” Wood, a ex-noiva de Scottie e, calorosa e sabiamente retratada por Barbara Bel Geddes, o princípio de realidade do filme? Pobre Midge. Pobres de nós. Quando ela sai de Um Corpo que Cai no meio do enredo, depois de Scottie ter um colapso após a morte de Madeleine e Midge perceber que o perdeu, ela abandona o público dentro do mundo de fantasia febril de Scottie. Sem o calor de Bel Geddes, Stewart parece mais frio do que nunca.)

Todas estas ideias estão enterradas no filme – pode-se discutir se Hitch ou Stewart ou qualquer outra pessoa as colocou conscientemente ali. É por isso que os filmes são arte, não arquitetura, apesar dos meticulosos projetos de storyboard de Hitchcock. O que é indiscutível é que, embora grande parte de Um Corpo que Cai continue enraizada em 1958, outros aspectos falam de maneira mais dolorosa e verdadeira do comportamento humano do que seus criadores poderiam ter imaginado.

O embaraço de quem assiste a esse filme – seu método e sua mensagem – sempre fez, acho eu, parte do plano de jogo. Resistir pode revelar uma relutância em lidar com o que ele diz sobre homens, mulheres e as feridas que as pessoas infligem umas às outras em nome do amor. Dois terços de século depois de ter sido feito, Um Corpo que Cai ainda desafia você a assisti-lo não com a cabeça, mas com o coração. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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Onde assistir a Um Corpo que Cai

O filme clássico de Hitchcock pode ser alugado (o valor varia entre R$ 6,90 e R$ 9,90) e assistido em plataformas como Claro TV+, YouTube, Apple TV e Google Play

Veja o trailer

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