Vidas Passadas, filme indicado ao Oscar de melhor filme e melhor roteiro original e que chega aos cinemas nacionais nesta quinta-feira, 25, apresenta sua questão central logo em seus segundos iniciais, antes mesmo de qualquer imagem aparecer na tela: “quem eles são um para o outro?”.
Não simplesmente quem somos, mas quem ou o que representamos para alguém, na vida das pessoas que encontramos. Essa é a tese que o longa semiautobiográfico da cineasta Celine Song vai tentar explorar, ou talvez responder, nos 100 minutos seguintes.
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Nora (Greta Lee, de The Morning Show) é alguém que parte. Ela é a jovem que emigrou da Coreia do Sul para a América do Norte ainda na pré-adolescência. Hae Sung (Teo Yoo) é alguém que fica. Ele é o amor de infância que a protagonista deixa para trás em Seul quando se muda com a família.
Arthur (John Magaro, de A Primeira Vaca da América), marido de Nora, é a realidade e o tempo que se interpõe entre eles, quando os dois ex-quase-amantes se reencontram nos Estados Unidos mais de 20 anos depois.
Nora decide viver em Nova York, Hae Sung vai estudar mandarim na China. Ela é dramaturga: cria novas pessoas, novas histórias, novas personas o tempo todo. Ele é engenheiro: constrói imóveis, de concreto, com alicerce, fixos. Seria um Eduardo e Mônica coreano, se as referências de Song não fossem tão fortemente cinematográficas.
Porque, para desenvolver sua tese, a diretora e seu longa partem do princípio que a geração dela, de 30 e alguns anos, aprendeu ao ter seu coração partido pelos – já clássicos – romances contemporâneos Antes do Amanhecer (1995) e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004) (citado diretamente pelo roteiro): as pessoas são um lugar, o amor é um tempo que passamos nelas.
Vidas Passadas, no entanto, não apenas se junta a esse panteão de grandes filmes, mas dá um passo adiante nessa teoria. A obra de Song é um romance essencialmente millenial. Nora e Hae Sung se “reencontram”, depois de 12 anos separados, via Facebook e, por meses, passam a conversar quase diariamente no Skype.
Incutido nisso está a ideia desses avatares, essas versões virtuais que criamos de nós mesmos – e, para os dois protagonistas, esse outro pelo qual eles se (re)apaixonam é isso: uma pessoa numa tela.
O que Song e seu filme acabam por mostrar, contudo, é que o que Nora e Hae Sung veem, na verdade, não é essa versão online que autoconstruímos nas redes, mas sim aquela pessoa/criança/adolescente que eles amaram 12 anos atrás.
Quando um antigo amigo de infância nos reencontra e adiciona no Facebook, a pessoa que ele vê não é aquela que criamos ali, mas sim aquela de que ele se lembra nos tempos de escola: o que as redes sociais permitiram é que diferentes versões temporais de nós mesmos nos atravessem o tempo todo por meio do olhar alheio.
E é isso que os dois protagonistas de Vidas Passadas representam um para o outro. Nora e Hae Sung são, essencialmente, dois personagens habitando em fusos diferentes, em tempos diferentes, da vida de cada um deles.
Essa é a – bela – teoria que o longa de Song elabora: existem versões de nós mesmos que ficam eternizadas em outras pessoas. E amar esse/a outro/a não significa necessariamente algo romântico. Significa uma nostalgia, um carinho, uma melancolia por alguém – um “eu”, um “si mesmo” – que não existe mais, a não ser naquela pessoa.
Nessa “longa jornada de apodrecimento” que é viver, Nora e Hae Sung representam para o outro um passado que é também uma quimera, cheio de possibilidades, de potencial, de versões latentes. Não por acaso, Arthur associa seu “rival” coreano ao mundo dos sonhos da mulher – que só sonha em coreano. Hae Sung é a imagem na tela, o sonho, aquilo que não foi, prenhe de potenciais aventuras e emoções. Arthur é a realidade.
Song representa essa oposição numa rima visual em uma das sequências mais bonitas do filme, quando os dois protagonistas se reencontram presencialmente pela primeira vez, após mais de 20 anos de distância.
Eles se abraçam em frente a uma estátua toda sólida, de concreto, fechada, que remete e ao mesmo tempo se opõe a uma escultura contemporânea em que Nora e Hae Sung brincaram no seu primeiro e único “date”, ainda pré-adolescentes, cheia de buracos e espaços vazios – de potencial e de um futuro a ser preenchido.
E se Greta Lee tem recebido a maior parte dos elogios por viver essa Nora tão móvel, olhando sempre adiante, e tão múltipla, filmada constantemente em frente ao espelho pela fotografia de Shabier Kirchner, Teo Yoo é o grande coração partido de Vidas Passadas.
O rosto do ator (nascido, na verdade, na Alemanha) nessa cena do reencontro entre os dois personagens – que consegue expressar, ao mesmo tempo, amor, alegria, nostalgia, dor por uma vida não vivida, um leve desespero do qual ele nunca deseja sair, uma “pequena morte” – é uma das grandes performances do cinema em 2023.
Os muitos, e merecidos, prêmios e elogios ao filme, porém, não se devem exclusivamente ao seu bom elenco. Em seu longa de estreia, Celine Song demonstra um apuro e uma capacidade de síntese visual de causar inveja em muitos veteranos.
Nessa mesma sequência do reencontro, ela usa a ponte do Brooklyn ao fundo para representar a distância entre Nora e Hae Sung, quando eles revelam o quão diferentes são um do outro; e logo em seguida, enquadra o (quase) casal em frente ao carrossel, quando a tensão romântica entre eles volta à tona, para mostrar como o tempo é, sim, um círculo achatado, como pontificou o true detective Rust Cohle.
E acima de tudo, assim como sua Nora dramaturga, Song alicerça seu Vidas Passadas em um dos melhores roteiros de 2023. Logo no início, a mãe da protagonista afirma que “se você deixa algo para trás, ganha algo também” – e essa talvez seja a síntese do filme.
A ideia de que, para crescer e evoluir, é necessário constantemente abrir mão e deixar para trás pequenos pedaços de nós mesmos: invisíveis células epiteliais, fios de cabelo, pedaços de unha, versões de nós mesmos, pessoas que amamos e que fazem parte de nós. Algumas dessas perdas doem mais do que as outras.
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