Nem a idade nem a longa carreira de mais de 70 anos diminuíram o apetite de Woody Allen por fazer cinema. Aos 86 anos, ele chega a seu 50º filme como diretor com O Festival do Amor, rodado mais uma vez na Europa, mais precisamente em San Sebastián, na Espanha, durante seu festival de cinema.
Wallace Shawn interpreta Mort Rifkin, um professor de cinema e aspirante a romancista que viaja à Espanha para acompanhar a mulher, a assessora de imprensa Sue (Gina Gershon). Mas, como não é cego, ele começa a desconfiar que Sue está flertando com um de seus clientes, o ambicioso cineasta Philippe (Louis Garrel). O estresse e a hipocondria fazem com que Rifkin acredite estar doente, procurando ajuda médica na forma de Jo Rojas (Elena Anaya), por quem ele se encanta. À noite, Rifkin tem sonhos em que se coloca em grandes clássicos do cinema, como Persona, de Ingmar Bergman, e Cidadão Kane, de Orson Welles.
O Festival do Amor ficou pronto em 2020 e por Woody Allen já haveria um 51º filme, que seria rodado em Paris, mas foi interrompido pela pandemia - a única coisa capaz de impossibilitar sua média de uma nova obra lançada por ano.
O trabalho também parece uma espécie de refúgio para o diretor, que teve a carreira brilhante obscurecida pelas acusações de sua ex-mulher, Mia Farrow, de abuso sexual da filha adotiva do casal, Dylan, em 1992. Pouco antes, tinha vindo à tona que ele vivia um romance com a filha adotiva de Farrow, Soon-Yi, com quem ainda está casado e com quem adotou duas meninas. “Eu suponho que pelo resto da minha vida um grande número de pessoas vai pensar que eu sou um predador”, disse Allen em entrevista recente ao jornal inglês The Guardian. “Tudo o que eu digo a respeito do assunto parece egoísta e na defensiva, então é melhor seguir meu caminho e trabalhar”, completou ele, que nunca foi acusado nem condenado por abuso.
Em entrevista ao Estadão, por telefone, Woody Allen falou sobre O Festival do Amor, pandemia, se ele vê filmes da Marvel e seus projetos para o futuro - incluindo se pretende ou não fazer um longa-metragem no Rio de Janeiro.
O Festival do Amor é seu 50º filme. Isso faz com que reflita sobre a carreira?
Não, quando eu faço um filme eu nunca vejo novamente. O primeiro filme que fiz foi em 1967 ou 1968, não me lembro. E nunca mais vi. Nunca mais assisti a nenhum deles, porque não acho que seja uma boa ideia fazer isso.
O longa faz homenagem a clássicos do cinema, como Persona - Quando Duas Mulheres Pecam e Cidadão Kane. Assiste a muitos filmes?
Vejo muito os clássicos e alguns contemporâneos quando sei que são bons, quando um amigo me indica e me diz que eu provavelmente vou gostar. Mas eu gosto de ver os clássicos frequentemente, é prazeroso para mim. Com o coronavírus, fiquei muito em casa, então vi ocasionalmente filmes na televisão. Muitos eram filmes antigos, da minha infância, que me trazem muitas memórias e por isso me dão muito prazer. Foi engraçado rever alguns. Muitos que eu amava me parecem tolos. E outros que não apreciava tanto me parecem ótimos.
Qual filme contemporâneo viu recentemente?
Não tenho ido muito ao cinema, mas recentemente vi documentários. Há um muito bom sobre a relação entre Tennessee Williams e Truman Capote e outro, que ainda não foi lançado, sobre Leonard Bernstein. E eu gostei demais do filme da Jane Campion, Ataque dos Cães.
Gosta de assistir a filmes na televisão?
Não. Mas, se for O Poderoso Chefão ou Cidadão Kane, que eu vi na tela grande, não me incomodo de ver de novo na televisão. Não gostaria que meus filhos vissem os clássicos primeiro na televisão em vez do cinema. Eles poderiam rever esses filmes na televisão, desde que tivessem visto da maneira correta primeiro. É uma experiência muito diferente sentar-se com centenas de pessoas no cinema. Em casa, dá para interromper o filme, ir buscar um copo de água. Eu entendo quem prefira ver em casa. Eu, não. A sala de cinema é mais empolgante para mim.
Como se sente vendo um filme como Homem-Aranha: Sem Volta para Casa tomando praticamente todas as salas de cinema?
Acho que diz muito sobre o público que está indo ao cinema. As pessoas querem ver isso, estão dispostas a, no meio de uma pandemia, ir à sala de cinema para ver Homem-Aranha, com todos os seus efeitos. Para mim, é uma indústria separada. Existe o cinema como negócio e o cinema como arte. Quando artistas como Luis Buñuel ou Ingmar Bergman faziam um filme, eles esperavam um público pequeno de pessoas perspicazes, educadas e interessadas em obras de arte sérias. E há toda uma indústria interessada na bilheteria. Se você está nesse ramo, é maravilhoso, eles fazem centenas de milhões de dólares. Eu estou interessado em filmes mais artísticos, com público menor. Meu desejo ao fazer um filme não é financeiro, mas, sim, de fazer um bom filme. Então, mesmo que a audiência seja pequena, tudo bem.
O senhor assiste aos filmes da Marvel?
Não vejo Homem-Aranha ou Vingadores. Mas há um público enorme de pessoas que adoram esses filmes. São gostos diferentes, como tem gente que gosta de rock e outros que preferem música erudita.
E suas filhas, assistem aos filmes da Marvel?
Eu tentei dirigi-las a filmes bons, mas quando estavam crescendo gostavam de lixo que vinha do mundo mais comercial. Agora, aos 20 anos, estão começando a apreciar outros tipos de filmes.
O senhor é conhecido por querer evitar a morte o tanto quanto possível e ser um pouco obcecado com doenças. Como está sendo atravessar a pandemia?
Foi traumático para todos, inclusive para mim. Quando a pandemia começou, eu disse que ia ficar em casa e que me acordassem quando terminasse. Disse que não ia sair. E todos eram super cuidadosos no começo. Pediam comida e desinfetavam a sacola. Eu fui muito cuidadoso e fiquei com muito medo. Mas as vacinas fizeram uma enorme diferença.
Como vê a politização da vacina?
Pois é. Eu não entendo quem não se vacina, quem se coloca em risco. Se todos se vacinassem, poderíamos nos livrar da pandemia. Mas virou um assunto político, uma medalha de honra não se vacinar. Enfim, com as vacinas, ficou menos aterrorizante. Porque, antes, quem tinha mais de 65 anos tinha grande chance de não sobreviver se tivesse covid. Nova York foi severamente atingida pela pandemia, mas hoje é um dos melhores lugares para se estar. Mas ainda é um problema, e pior ainda porque poderia ter sido evitado.
O senhor fez seus últimos filmes na Europa. Pretende continuar rodando por lá?
Sim. Eu tinha um projeto que deveria ter sido rodado um ano e meio atrás, em Paris. Estava tudo pronto. Mas, por causa da pandemia, tivemos de cancelar. Se a pandemia melhorar, não houver variantes e tivermos o financiamento novamente, ainda vou tentar fazer este filme em Paris, no verão - eu só filmo no verão, porque o inverno é frio demais para mim.
E aquele projeto no Rio?
Nunca tive um projeto no Rio. Minha irmã, que é uma das minhas produtoras, foi ao Rio e a São Paulo para conversar sobre possibilidades. Mas eu nunca tive uma ideia. Eu preciso ter uma ideia para filmar no lugar, não dá para ir e fazer um filme só porque há financiamento. Tive ideias para Londres, Roma e outros lugares. A história tem de ser real, nativa à geografia. Nada me ocorreu em relação ao Rio. Mas adoraria ir ao Rio e fazer um filme lá.
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