Se o próprio Shakespeare ia buscar em outras fontes a inspiração para suas criações imortais, o que pode ser mais shakespeariano do que elaborar uma obra de arte original a partir de uma trama do Bardo? Em O Rei Lear da Estepe, o escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883) constrói uma novela sólida e poderosas a partir de uma das mais inspiradas e inspiradoras peças shakespearianas.
Não custa lembrar que a tragédia do monarca que repartiu, em vida, seu legado entre as filhas, e foi abandonado por elas, constituiu a grande obsessão criativa de Giuseppe Verdi (1813-1901), que passou décadas acalentando o não-realizado projeto de uma ópera sobre o tema. Em Ran (1985), Akira Kurosawa (1910-1998) realizou uma suntuosa transposição cinematográfica da ação para o Japão do século 16 – uma estratégia de deslocamento geográfico, cultural e temporal que pode soar análoga à transferência que Turguêniev faz do mesmo tema para a Rússia rural do século 19. Na verdade, não fosse pelo tamanho, O Rei Lear da Estepe bem poderia integrar as Memórias de Um Caçador, ciclo de 25 narrativas cuja publicação em livro, em 1852, quando o autor tinha 34 anos, serviu para firmar seu nome como um dos incontestáveis protagonistas não apenas das letras, mas da vida social de seu país – considera-se que a obra desempenhou papel fundamental na abolição da servidão na Rússia, em 1861, como um equivalente local de A Cabana do Pai Tomás, também publicado em 1852 pela norte-americana Harriet Beecher Stowe (1811-1896). Pois bem: logo após as Memórias, Turguêniev manifestou muitas vezes, em sua correspondência, o desejo de se afastar do estilo dessa obra. E, assim, conseguiu abrir caminho para romances como Rúdin (1856), Ninho de Fidalgos (1859) e, sobre tudo, sua obra-prima, Pais e Filhos (1862). Porém, ao completar meio século de idade, os temas autobiográficos das Memórias, ligados à infância e juventude na propriedade rural de Spásskoie (270 quilômetros a sudeste de Moscou, na província de Oriol), à sombra de uma mãe tirânica e dominadora, parecem voltar a assombrar o escritor. A redação de O Rei Lear da Estepe começa em 1869 e, à parte o molde shakespeariano, vale lembrar que o narrador do conto é um adolescente de quinze anos, cuja paixão é a caça, na propriedade rural da mãe. Fazem-se presentes outros temas recorrentes das Memórias, como ricas descrições da natureza, do campesinato e das lendas e tradições populares. Não custa lembrar que, em seguida, Turguêniev escreverá mais três contos com os quais enriquecerá a segunda edição das Memórias, em 1874: O Fim de Tchertopkhánov, Relíquia Viva e Um Barulho. Shakespeare, por sinal, também já se fazia presente em um dos contos mais famosos das Memórias – Hamlet do Distrito de Schigrí. Ali, como naquele que talvez seja o ensaio mais célebre de Turguêniev, Hamlet e Dom Quixote, o príncipe da Dinamarca aparece como modelo de um tipo marcante da literatura russa, cujo nome o escritor cunharia em uma de suas novelas: o “homem supérfluo”. Pois a “bardolatria” era forte no país dos tsares, no século 19, quer devido aos ventos que Goethe e Schiller sopravam desde terras germânicas, quer devido ao impulso do modelo supremo das letras russas, Aleksandr Púchkin (1799-1837), que tomou Shakespeare como paradigma em sua própria dramaturgia. Tornou-se hoje quase um clichê, por exemplo, comparar Dostoiévski – o antípoda literário de Turguêniev – ao autor de Romeu e Julieta. Turguêniev, que tinha veleidades de dramaturgo, ganhou um volume de obras de Shakespeare no original, em inglês, aos 20 anos de idade, e passou a vida estudando, citando e admirando o autor. Em discurso proferido em 1864, por ocasião do tricentenário de nascimento do Bardo, e publicado como anexo à edição brasileira de O Rei Lear da Estepe, ele chega a afirmar que Shakespeare “tornou-se nossa propriedade, entrou em nossa carne e nosso sangue”. Nessa relação carnal com o universo shakespeariano consiste a força da novela agora publicada pela Editora 34. A exemplo do que Kurosawa faria um século mais tarde, Turguêniev não realiza uma mera “adaptação”, e sim apropria-se da trama original para articulá-la segundo seus próprios postulados artísticos, assim urdindo um trabalho forte e profundamente pessoal. A principal ressalva a ser feita refere-se a Sliódkin, o equivalente russo de Edmundo, vilão shakespeariano, que Turguêniev, de forma virulenta e gratuita, faz questão de chamar o tempo todo de “jid” – a injúria racial russa para judeu. Embora o histórico biográfico e literário de Turguêniev esteja bem longe dos matizes antissemitas que maculam a obra de Dostoiévski, esse espinho na floração tardia das Memórias pode machucar mais de um leitor contemporâneo.
*Irineu Franco Perpetuo é autor de 'Como Ler os Russos' (Editora Todavia, 2021)
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