Chega em boa hora a reedição de O Cru e o Cozido (1964), de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), traduzido pela professora da USP Beatriz Perrone-Moisés e dedicado ao estudo de mitos ameríndios. Os outros três volumes que completam a série, chamada de Mitológicas, são: Do Mel às Cinzas, A origem dos Modos à Mesa e O Homem Nu, todos já vertidos para o português pela mesma tradutora em anos passados.
Obra monumental de apresentação e análise de mitos ameríndios, as Mitológicas têm uma lição a nos dar no momento em que constatamos, na atual produção literária brasileira, uma tendência, compartilhada por autores e críticos, a valorizar a produção literária “genuinamente brasileira”, definida como uma nova arte regional capaz de apresentar as identidades nacionais. Os mitos indígenas, que são acima de tudo grande literatura, como verificamos lendo O Cru e o Cozido, não estão, porém, confinados num território, mas transcendem todas as fronteiras, sejam geográficas, espirituais ou mentais. Os temas se desdobram ao infinito, afirma Lévi-Strauss.
Mário de Andrade, é sempre bom lembrar, teria escolhido Macunaíma como herói do seu romance homônimo, publicado originalmente me 1928, porque esse personagem indígena, conforme ele declarou, “não é só do Brasil, é da Venezuela também, e o herói, não achando mais a própria consciência, usa a de um hispano-americano e se dá bem do mesmo jeito”. A noção de narrativas continentais, protagonizadas por heróis pan-americanos, é inerente às Mitológicas, cujos quatro volumes realmente comprovam, acompanhando-as com brilhantismo, as longas “viagens” dos mitos de um extremo a outro do Novo Mundo. Centrada na busca das operações lógicas comuns a todos os relatos (a sintaxe da mitologia ameríndia), a análise “não se deixa restringir a limites territoriais ou a classificações”.
Os relatos analisados por Claude Lévi-Strauss (um mito bororo do Brasil Central é seu ponto de partida) são tão sutis e complexos que “um mito pode perfeitamente contradizer a realidade etnográfica à qual pretende se referir”, sem falar que pode igualmente preservar “a lembrança de usos desaparecidos ou, ainda, em vigor num outro ponto do território tribal”. Essa constatação, aliás, é motivo de um intenso debate com os padres salesianos em O Cru e o Cozido, pois, se por um lado o mitólogo admira a extraordinária Enciclopédia bororo compilada por eles, por outro lado critica a sua opinião “volúvel” sobre certos dados relevantes: “eles têm a lamentável tendência a crer que a informação mais recente anula todas as outras”.
A divergência das sequências e dos temas, defende Lévi-Strauss, é um atributo fundamental do pensamento mítico. E propõe a seguinte fórmula, que não poderia ser mais estimulante para os dias atuais, sobretudo no Brasil: “Como os ritos, os mitos são in-termináveis”, razão por que se referem a uma realidade instável, cujo reconhecimento nos faz perceber que “mitos de proveniências muito diferentes formam objetivamente um grupo”. Os mitos ameríndios não reconhecem, em nome do “nacional”, do “local”, nenhum tipo de fronteira. “Não pretendemos, portanto, mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia”, conclui o mitólogo, destacando, assim, de forma radical, o diálogo entre os relatos: “Consequentemente, quando um aspecto de um determinado mito parece ininteligível, um método legítimo consiste em tratá-lo, de modo hipotético e preliminar, como uma transformação do aspecto homólogo de um outro mito, ligado para reforço do argumento ao mesmo grupo, e que se presta melhor à interpretação.”
Definitivamente, os mitos não estão isolados, e essa ideia poderia ser associada à obra do artista chileno Juan Downey, que, na instalação Videos Trans Americas, de 1976, fala de culturas do continente americano que se mantêm separadas, ignorando até mesmo que compartilham as narrativas fundadoras. Downey, por causa disso, se propõe a fazer uma longa viagem continental, registrada em vídeo, a fim de criar uma interação entre culturas que teimam em se ignorar umas às outras.
Não foi por acaso que mencionei a instalação do artista chileno. Nas páginas iniciais de O Cru e o Cozido, Lévi-Strauss tece considerações sobre as analogias que existiriam entre a mitologia ameríndia e a arte europeia, destacando a música e a pintura. Salta à vista, nas suas elucubrações, todo o conservadorismo estético do mitólogo, pois ele não tolera, por exemplo, a arte abstrata, a qual, segundo o seu ponto de vista, perderia o “poder de significar”. Em seguida fustiga a arte caligráfica modernista, na qual vê apenas “criaturas do capricho”, ou seja, uma paródia da verdadeira arte. Essas considerações parecem anular as contribuições de artistas hoje considerados clássicos, como Wassili Kandinski, que utilizou linhas caligráficas “caprichosas” em composições que redundaram na invenção da arte abstrata ocidental.
Curiosamente, dois professores da Bauhaus, Albert e Anni Albers, que trocaram a Alemanha pelos Estados Unidos quando se viram ameaçados por Hitler, declararam, depois de numerosas viagens ao México, com passagens por Cuba, Peru e Chile, que a América Latina seria a terra da abstração, a qual é uma arte milenar e não uma invenção europeia. Josef Albers incorporou os padrões geométricos indígenas em suas telas, e Anni fez tecelagem inspirada na técnica andina, numa demonstração que a arte europeia mais radical (justamente a abstrata) poderia dialogar de igual para igual com a arte ameríndia milenar.
Essa possibilidade de diálogo não chegou, porém, a ser proposta por Lévi-Strauss, em razão, parece-me, de seu conservadorismo estético em matéria de arte moderna. Mas ele soube, como ninguém, fazer com que os mitos ameríndios recobrassem o fio da meada continental, o que já é muito e mais do que meritório.
SÉRGIO MEDEIROS É PROFESSOR DE LITERATURA NA UFSC. PUBLICOU, ENTRE OUTROS, ‘O ACUMULADOR’ (ILUMINURAS, 2021) E 'O BARRACO DAS LETRAS E DOS HIERÓGLIFOS’ (ARTE & LIVROS, 2020)
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