Até então estava tudo no lugar certo, seguindo o roteiro da espetacular reinvenção conceitual de show que o Coldplay escreve há alguns anos, e que radicalizou a partir da mais recente turnê Music of the Spheres. O longo périplo que inclui mais cinco datas no mesmo Estádio do Morumbi abrigando 72,5 mil pessoas todas as noites até o dia 18 de março antes de seguir para Curitiba e Rio de Janeiro – ninguém teve tanto poder na história do showbiz no Brasil – começou nesta sexta. Há muito o que se refletir sobre o que se passa dentro daquele portal aberto com luzes, fogos de artifício, melodias afetuosas e o uso do corpo da plateia como um poderoso elemento cenográfico. Ou mais do que isso.
As pulseiras distribuídas ao público, com luzes de várias cores acionadas pela produção do espetáculo, são a Coca-Cola do negócio. Uma invenção que começa a ser copiada por outros grupos sem o mesmo resultado. O Imagine Dragons, por exemplo, fracassa terrivelmente ao tentar o mesmo efeito distribuindo etiquetas transparentes aos fãs, que devem ser coladas sobre a lanterna do celular. Cada área do estádio ganha uma cor de etiqueta diferente, mas o roteiro do show não é estratégico, Dan Reynolds está longe de ser Chris Martin, nem todas as pessoas querem saber de ligar a lanterna e nada acontece.
As luzes do Coldplay são o narrador da história. Antes de Yellow, o estádio fica amarelo, com a aura da luz que surge de nossos pulsos sobrevoando nossas cabeças enquanto os primeiros acordes preparam a entrada de Chris Martin; em The Scientist, os pontos azuis saídos de tantos corpos nos fazem flutuar por uma galáxia imaginária; em Paradise, não apenas pulamos com Martin, mas vamos parar em um gigantesco club eletrônico envolvidos pela explosão das muitas cores produzidas, mais uma vez, por nós mesmos. Nos sentimos estrelas, não mais observadores, e brilhamos tanto que o muro que divide palco de plateia se desfaz para colocar-nos em um mesmo nível. Muitas pessoas vão continuar lotando Morumbis atrás do Coldplay porque aprenderam que podem ser mais do que plateia. Ali, elas são o espetáculo.
Martin usa uma camiseta interessante que diz em inglês algo como “todo mundo é um alienígena em algum lugar”. Ele tem razão, e o alienígena da noite de sexta foi seu convidado surpresa, Seu Jorge. Mesmo sendo supervalorizado como cantor, e tendo desafinado horrores enquanto acertava seu retorno no fone de ouvido, Seu Jorge é um grande artista e sabe o que fazer para ter uma plateia nas mãos. Não foi ele em si o problema, mas o que se tornou ali, dentro de um show banhado por discursos humanistas, amorosos e ambientais, cantando seu hit de tons machistas Amiga da Minha Mulher.
Aos ouvidos estrangeiros amantes de música brasileira, Seu Jorge é uma espécie de reedição de Jorge Ben. Sim, eles acham. São o suingue, a malemolência, a brasilidade e mais alguns clichês da ideia de música brasileira que o fazem conquistar territórios. E como um gringo nunca entendeu o que Jorge Ben dizia – até hoje os brasileiros não entendem – nenhum gringo acha importante saber também o que Seu Jorge está dizendo. Será que o pacifista Chris Martin sabe o que diz a letra de Amiga da Minha Mulher, uma das 12 canções listadas pelo Instituto Geledés que cantamos sem perceber que são machistas ou sexistas no Brasil?: “Ela é amiga da minha mulher, pois é pois é / Mas vive dando em cima de mim, enfim, enfim / Ainda por cima é uma tremenda gata, pra piorar a minha situação / Se fosse mulher feia tava tudo certo, mulher bonita mexe com meu coração.” Mais alienígena ao discurso do todos somos iguais do Coldplay, que faz pessoas virarem estrelas enquanto cantam Fix You, impossível.
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