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Coluna quinzenal do roteirista Lusa Silvestre com crônicas sobre a vida vista com ironia dramática

Opinião | Vício em TikTok: Eu achava que podia parar quando quisesse

Passei a consumir coisas que nunca me interessei, mas o algoritmo achava que tinha a ver comigo. Com a ajuda da família, comecei a superar

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Atualização:

Eu achava que podia parar quando quisesse, que estava no controle. Sentava no sofá depois do trabalho - e deleitava meus olhos no TikTok. Sentia a dopamina entrando nas veias. Só vídeo idiota, que delícia.

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Tudo que o algoritmo sugeria, eu assistia. Vi uma pessoa que tomava Gin Tônica pela narina, lacrimejando. E um cachorro que rosnava “Geraldo”. E também um influencer que atirava bolas de ping pong em um conjunto de panelas - as bolas quicando no teflon até entrar em um copo. O sujeito tentou 32 vezes até acertar (eu contei).

Podia estar estudando Scorsese, fazendo quebra-cabeça ou sudoku. Em vez disso, desperdiçava a vida chapado no celular. Passei a consumir coisas que nem sabia que me interessavam, mas o algoritmo achava que tinham a ver comigo. Vídeos de trailer na estrada, por exemplo. Cabine, interiores, sofás. Eu jamais viajaria em um troço desses, gosto de banheiros com grande capacidade hidráulica - mas eu consumia como se fossem Os Bons Companheiros.

Podia estar estudando Scorsese, fazendo quebra-cabeça ou sudoku, mas estava no celular (Imagem ilustrativa) Foto: Miljan Živković - adobe.stock

Consegui sair da obsessão por trailers indo para vídeos de comida. Piorou. Virou outra compulsão, principalmente se profanassem minha ancestralidade italiana. Uma americana (claro) colocou, em um refratário, tomate, cream cheese, alho, caldo de frango de embalagem Tetra Pak, macarrão cru e levou tudo pro forno. Depois, misturou a gosma borbulhante com espátula, falando “this is delicious”. Tal sacrilégio me irritou. Delicious só se for na sua house, minha daughter.

Fui reclamar nos comentários. Um erro: o algoritmo me pegou na interação, e passou a me recomendar mais ofensas culinárias. Aí a raiva passou a ser a nova dopamina. Receita de cupim amarrando a carne de cabeça pra baixo, na tampa da panela? Saí dando cadeirada. Receita de lasanha usando camadas de miojo cru? Vomitei no celular em protesto (ninguém se importou).

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Espetaram espaguete duro em uma salsicha, para que ela tivesse cabelos louros ao cozinhar – um hot dog da raça Golden Retriever. Achei absurdo. Mesmo assim, assisti pra falar mal. Gente fazendo comida no mato, ao lado de um rio límpido, cortando cebola com machado? Fico maluco. É gastronomia para escoteiros? Largados e Pelados na Bocaina? Fico torcendo pro cheiro da iguaria atrair algum urso.

Porém, com a ajuda da família, consegui superar. Não sou mais movido pela raiva de quem esculacha a imperial culinária italiana. Quando vejo que estou caindo de novo no precipício, pego logo meu livro. Ou, melhor ainda: taco o celular na parede. Estou por hoje; sou consciente. Evito o primeiro vídeo.

Opinião por Lusa Silvestre

Roteirista dos filmes 'Estômago', 'O Roubo da Taça', 'Medida Provisória' e 'Sequestro do Voo 375'.

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