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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O tempo foi generoso com você

Em 1970, o conjunto vocal MPB-4 lançou ‘Amigo É pra Essas Coisas’; escute a linda música como um diálogo menos formal e de enorme fluidez poética

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Atualização:

A etiqueta é clara: ao encontrar alguém que não vemos há anos, deveríamos dizer algo amável como “o tempo foi generoso com você”. Já sinto o vozerio do time que contesta fórmulas retóricas da amabilidade. Preciso desenvolver.

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O tempo passa para todos. Primeiro dado que justifica a gentileza: você e seu velho conhecido estão vivos! Tivemos trânsito, família, homicídios, covid, governos e cá estamos os dois andando! Essa é a maior generosidade da vida: sobreviver.

Tenho de destacar: o rio fluiu em invernos longos, mas vocês ainda se reconhecem em meio a névoas da memória? O tempo foi generosíssimo! Louvado seja o cérebro que navega, identificando passageiros atuais e antigos do cruzeiro biográfico.

MPB-4: formação de 2017 Foto: Camilla Guimarães

Argumento da sobrevivência e da memória enunciados, precisamos ressaltar um recurso retórico: a captatio benevolentiæ. A expressão latina indica que todo palestrante (ou vendedor) tem poucos segundos iniciais para angariar a simpatia do público. Uma frase amável ajuda. Logo em seguida, um pouco de humor. Aplainado o vale da distância, superado um natural estranhamento e restabelecida a ponte de comunicação, você pode abandonar as estratégias retóricas.

A frase sugerida (“o tempo foi generoso”) pareceu artificial e fora da sua zona de conforto? Sem problemas! Crie algo bom para um primeiro contato. Em 1970, o conjunto vocal MPB-4 lançou (Aldir Blanc e Silvio da Silva Jr): Amigo É pra Essas Coisas. Escute a linda música como um diálogo menos formal e de enorme fluidez poética. Ali há outras fórmulas, mais brasileiras. Mas... existe um ligeiro erro: um dos amigos reclama, logo no começo, que “Rosa acabou comigo”. Você deve evitar enunciar problemas nos primeiros instantes. O término de uma relação, um diagnóstico desagradável, a falência ou o problema com os filhos devem aparecer ao longo da conversa. Pior: o ouvinte ainda diz, sabendo do fracasso matrimonial do outro, que: “Dei mais sorte com a Beatriz”. Aqui a regra é de ouro: se alguém confessar um câncer, jamais diga: “Felizmente minha saúde é de ferro”. Erro crasso e grosseiro.

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Em resumo, lembranças breves de uma época antiga: a comunicação olho no olho, sem emojis, atento ao rosto de outra pessoa. Houve um mundo que era assim. Creiam-me! “Meninos, eu vi!” Hoje, a frase virtual seria “Oi, sumido!” acompanhada de rostinhos sorridentes. Esperança?

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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