Setembro de 1919. A Primeira Guerra terminara havia pouco menos de um ano quando Adolf Hitler, então aos 30 anos de idade, escreveu uma carta a um colega de farda. Neste documento histórico, referiu-se aos judeus como uma “tuberculose racial”, uma “raça estrangeira” que desfrutava dos mesmos direitos dos alemães, porém sem “abrir mão de suas características”. Tudo o que um judeu fazia, escreveu Hitler, não tinha outro propósito a não ser “alimentar sua cobiça por dinheiro e poder”. Àquela altura, Adolf Hitler não era nada além de um medíocre cabo do Exército alemão. Para desgraça do mundo civilizado, no entanto, seus dias de obscuridade logo ficariam para trás. Impregnado naquele papel estava a alma de um homem carcomido pelo ódio e por um profundo ressentimento pela acachapante derrota da Alemanha no conflito.
Mais de uma década antes de ascender ao poder, Hitler já soprava as brasas de sua implacável sanha persecutória, a sede de vingança que prenunciava o horror sem precedentes que estava por vir. Diagnosticada por ele a raiz de todos os males da Alemanha, os judeus, bastava um “antibiótico” para erradicar a “tuberculose” da face da Terra. A partir de 1942, passaria a ser administrado em escala industrial e ficaria tristemente conhecido como a “Solução Final da Questão Judaica Europeia”: o Holocausto, a catástrofe (shoah, em hebraico) que dizimou 6 milhões de judeus. Muito já foi escrito sobre o Holocausto. Até hoje, todos os anos, dezenas de livros sobre o tema são lançados, tanto de ficção como de não-ficção. E é bom que seja assim. Quanto mais o genocídio dos judeus for lembrado e conhecido pelas novas gerações, melhor. No entanto, passadas quase oito décadas da hedionda experiência, escassa é a literatura sobre a construção da memória que hoje se tem do Holocausto, sejam as memórias dos próprios sobreviventes, seja a visão que o mundo passou a ter do maior crime contra a humanidade já cometido. É fundamental notar que aqui não se trata da literatura memorialista do Holocausto, gênero profícuo que teve o italiano Primo Levi e o romeno Elie Wiesel, ambos sobreviventes dos campos da morte (Auschwitz e Buchenwald), como duas de suas penas mais eloquentes. Trata-se de um olhar arguto sobre os meandros psíquicos, sociais, intelectuais – e até morais – que fizeram o Holocausto ser o que é hoje, tanto para os que venceram a loteria do acaso, ou seja, os que sobreviveram à barbárie nos campos e guetos contra todas as probabilidades, como para todos nós outros, aos quais jamais será dado compreender em sua inteireza o que foi, de fato, o mal inominável. É precisamente esta lacuna que o jornalista e historiador Marcos Guterman preenche com seu novo livro, Holocausto e Memória (Ed. Contexto, 2020), escrito em homenagem a seus avós maternos, Szaja e Chaja Wajskopf, ambos sobreviventes dos campos de Dachau e Auschwitz. Se é impossível atribuir um sentido ao Holocausto, e a partir disso tentar entender uma miríade de questões que cercam a catástrofe há tanto tempo, o livro de Guterman é uma leitura indispensável para compreendermos a razão dessa impossibilidade, sobretudo porque os campos e guetos, como bem pontua o autor, foram instalações concebidas exatamente para pulverizar intramuros qualquer vestígio de humanidade e moral vigentes no “mundo exterior”. Naquele inferno, onde até o léxico era particular e as noções de algoz e vítima não raro foram subvertidas – basta lembrar dos kapos, nos guetos, e dos Sonderkommandos, nos campos nazistas –, o império da amoralidade impedia qualquer compreensão do que lá se passava com base em códigos conhecidos pelas vítimas até seu embarque nos trens fantasmas. Holocausto e Memória é dividido em duas partes. Na primeira, Guterman trata das memórias do Holocausto sob a perspectiva de seus sobreviventes. O leitor é guiado por um labirinto de possibilidades que revela como o processo de construção da memória que cada um dos sobreviventes tem dos horrores que sofreu e presenciou seja absolutamente único. Prisioneiros de um mesmo campo ou gueto podem ter passado por suplícios idênticos, mas sempre trazem marcas distintas na alma. O que relatam, portanto, pode ser apenas um fragmento de suas vivências ou mesmo um amálgama entre estas e as de outras pessoas, que sequer verdadeiras – do ponto de vista factual – podem ser. Para outros sobreviventes não há sequer o que relatar, explica o autor. O silêncio é o único meio possível de lidar, no presente, com um passado que não cabe nos limites da linguagem. De uma hora para outra, milhões de judeus foram arrancados não só do mundo conhecido, mas de sua própria identidade. Como falar racionalmente sobre isso? Não por acaso, há sobreviventes que atribuem uma dimensão mística ao Holocausto, remetendo à origem grega do termo, a “oferta de sacrifício a Deus pelo fogo”. Na segunda parte da obra, Marcos Guterman aborda o processo de construção da memória que o mundo tem do Holocausto. Aqui, o papel da arte é central, em especial do cinema. O autor analisa alguns dos mais conhecidos filmes e documentários produzidos sobre o Holocausto, partindo do problema da simplificação. Para apresentar a catástrofe para o público de massa, a narrativa cinematográfica não raro a reduziu à luta do bem contra o mal, o que, como já dito, não dá conta de explicar as contradições deliberadamente provocadas pelos nazistas. Guterman lembra o cineasta francês Claude Lanzmann, diretor do seminal documentário Shoah (1985), para quem era impossível representar artisticamente o Holocausto. A importância de Holocausto e Memória vai além de sua abordagem inédita de um aspecto inexplorado da catástrofe, o processo de construção da memória. Pode não ter sido a intenção do autor, mas o livro chega aos leitores no momento em que autoridades no Brasil não se envergonham por explorar politicamente os horrores do Holocausto, estabelecendo falsas simetrias e, assim, impingindo às verdadeiras vítimas uma nova pena, a relativização de seu sofrimento.
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