“Sinto muito, Dave, receio que não eu não possa fazer isso.” Mesmo que você jamais tenha visto o filme, conhece a voz. HAL 9000, o aparentemente onipresente computador de 2001: Uma Odisséia no Espaço, foi a figura mais expressiva e emocional do filme, e deixou uma impressão duradoura em nossa imaginação coletiva.
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O épico de Stanley Kubrick, feito em conjunto com o livro homônimo de Arthur C. Clarke (336 páginas, editora Aleph, tradução de Fábio Fernandes, R$ 37) uma jornada da história pré-humana até um possível infinito que não precisa de nenhum ser humano, é provavelmente o mais respeitado, se não o mais amado filme de ficção científica de todos os tempos.
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A história da criação do desempenho de HAL – resultado de uma colaboração de última hora entre o peculiar diretor e o veterano ator canadense Douglas Rain – ficou de certa forma um pouco perdida nos 50 anos desde o lançamento do filme, em abril de 1968. Da mesma forma, seu impacto: a inteligência artificial tomou emprestada a persona de HAL e, involuntariamente, um toque canadense vive em nossos telefones e dispositivos.
O HAL de Rain tornou-se a referência padrão, não apenas para a voz, mas também para as qualidades humanas do que deveria ser a personalidade de uma máquina com percepção. Basta perguntar ao Alexa da Amazon ou ao Google Home – a cadência, a formalidade amigável, a inteligência agradável e o senso de calmo controle em suas vozes evocam a performance inesquecível de Rain. Enquanto olhamos com cautela para um futuro completamente transformado por incursões de AI em todos os aspectos de nossas vidas, HAL espreita.
Para Scott Brave, coautor de Wired for Speech: How Voice Activates and Advances the Human-Computer Relationship, (Conectado para a Fala: Como a Voz Ativa e Propaga a Relação Humanos-Computadores, em tradução livre), HAL 9000 é um misto de mordomo e psicanalista. “Ele tem o senso de consideração e de distanciamento”, disse Brave, acrescentando que viu um efeito cascata, por exemplo, no assistente virtual do iPhone. “Quando ouço algo como Siri, sinto que há muito em comum.”
Em uma entrevista de 1969 com o autor e crítico Joseph Gelmis, Kubrick disse que estava tentando transmitir a realidade de um mundo povoado – como o nosso será em breve – por “entidades de máquinas que possuem tanto ou mais inteligência que os seres humanos. Queríamos incentivar as pessoas a pensar em como seria dividir um planeta com tais criaturas”.
O historiador de 2001, David Larson, disse que “Kubrick apresentou a última voz do HAL bem tarde no processo. Durante o planejamento de 2001, fora determinado que, no futuro, a grande maioria das entradas de comando e comunicação via computador seria por voz, e não teclado.”
Mas a inteligência artificial estava a décadas de uma reprodução convincente de uma voz humana – e quem poderia dizer como deveria soar um computador?
Para interpretar HAL, Kubrick escolheu Martin Balsam, Oscar de ator coadjuvante por Mil Palhaços. Talvez houvesse um eco gratificante que agradasse a Kubrick – ambos eram do Bronx e soavam da mesma forma. Em agosto de 1966, Balsam disse a um jornalista: “Na verdade, não sou visto no filme em nenhum instante, mas tenho certeza de gerar muita emoção projetando minha voz através daquela máquina. E também vou receber um prêmio da Academia por fazer isso.”
Então o diretor mudou de ideia. “Tivemos alguma dificuldade em decidir exatamente como o HAL soaria, e Marty era muito coloquialmente americano”, disse Kubrick na entrevista de 1969. Rain relembra Kubrick dizendo a ele: “Estou tendo problemas com o que tenho rodado. Você interpretaria o computador?”
Kubrick havia ouvido a voz de Rain no documentário Universe (1960). “Acho que ele é perfeito”, escreveu Kubrick a um colega em uma carta que está no arquivo do diretor. “A voz não é nem paternalista, nem intimidadora, nem pomposa, excessivamente dramática ou característica de um ator. Apesar de tudo isso, é interessante.”
Em dezembro de 1967, Kubrick e Rain se conheceram em um estúdio de gravação no estacionamento da MGM em Borehamwood, nos arredores de Londres. O ator não tinha visto um único quadro do filme, na ocasião em fase de pós-produção. Não conheceu nenhum de seus colegas de elenco. Rain sequer havia sido contratado para interpretar HAL, mas apenas para fazer narração. Kubrick finalmente decidiu-se contra o uso de narração, optando pela ambiguidade que irritara alguns espectadores, e pela transcendência para outros. Não é uma sessão da qual Rain se lembre com carinho: “Se você pudesse ser um fantasma na gravação, você acharia que aquilo era uma bobagem”.
Rain teve que rapidamente compreender e incorporar HAL, gravando todas as suas falas em 10 horas durante dois dias. Kubrick sentou-se “a um metro de distância, explicando as cenas para mim e lendo todas as partes”. Kubrick, de acordo com a transcrição da sessão em seu arquivo na Universidade das Artes de Londres, deu a Rain apenas algumas instruções de direção, incluindo: “Isso soa mais como se fosse um pedido peculiar”; “Um pouco mais preocupado”; e “Apenas tente mais próximo e mais deprimido”.
Quando HAL diz: “Sei que tomei algumas decisões muito ruins recentemente, mas posso lhe dar minha total garantia de que meu trabalho voltará ao normal”, Rain de certa forma consegue se mostrar sincero e não tranquilizador. E ao enunciar a frase “Acho que você sabe qual é o problema tão bem quanto eu” ele traz a sarcástica chatice de um melodrama familiar e ainda carrega a vibração desinteressada de um polido sociopata.
Kubrick fez Rain cantar a canção de amor de 1892, Daisy Bell (“Estou meio louco, tudo por amar você”), quase 50 vezes, em ritmos desiguais, em tom monótono, em toques diferentes e até mesmo murmurando-a. No final, ele usou o primeiro de todos os takes gravados. Cantada enquanto o cérebro de HAL vai sendo desconectado, é algo que lembra seus primeiros dias de programação, sua infância de computador. Ela encerra a cena de maior efeito em todo o filme. / Tradução de Claudia Bozzo
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