Quando a fusão óssea de Mimi Matthews, decorrente de uma lesão no pescoço, se rompeu, mais de uma década atrás, seu mundo mudou. Sua planejada carreira de advogada? Fora do alcance. Sua paixão por andar a cavalo? Fora de questão. Com o risco de uma nova lesão sempre no horizonte, Matthews começou a enfrentar um futuro incerto, com limitações que ela nunca tinha previsto.
Mas o trauma também lhe deu algo: o amor pela escrita, que desde então ela transformou em uma carreira de sucesso como escritora best-seller de livros românticos históricos. “Essa lesão foi 100% o que me trouxe de volta à escrita”, diz Matthews. “Todos os livros que escrevi foram na cama”.
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Para Matthews, escrever livros românticos é uma forma de processar as emoções complicadas que vêm com a deficiência. Ler romances do gênero “reafirma sua crença de que tudo vai dar certo e de que tudo significa alguma coisa... as coisas pelas quais você está passando. Sinto que as histórias de amor são incrivelmente valiosas nesse sentido”, diz ela.
Matthews não foi a única a encontrar conforto no gênero e em seus finais felizes. Nosso cenário midiático não é conhecido pelas representações positivas de pessoas com deficiência. Mas, nos romances românticos, os personagens com deficiência muitas vezes são mostrados como são: dignos de amor e intimidade. Eles têm encontros perfeitos, vivem histórias de amor épicas e fazem sexo picante. E, à medida que o gênero se diversifica, representações mais matizadas da deficiência estão chegando às prateleiras.
Agora, antes de nos empolgarmos muito, vale a pena observar que os livros românticos nem sempre fizeram um bom trabalho na representação da deficiência. Durante décadas, o gênero retratou a deficiência física como uma barreira para o amor – especialmente para heróis de guerra com cicatrizes em romances históricos. De acordo com Sarah Wendell, cofundadora do site Smart Bitches, Trashy Books, esse motivo muitas vezes era usado na narrativa como um atalho para o crescimento emocional do herói.
Wendell diz que a deficiência costumava ser vista como o traço definidor do personagem – o que não era uma abordagem muito sutil. Ela era usada “para gerar compaixão por um personagem que tinha comportamentos abomináveis. E isso, por si só, já é meio capacitista, porque é como se disséssemos: ‘Ah, você só tem compaixão porque lhe falta uma parte do corpo’ ou ‘você está com dificuldades emocionais’”. Mas as coisas mudaram nos últimos anos. “Acho que nos afastamos da ideia da ‘deficiência como parte do conflito’ e passamos para ‘qualquer deficiência é, na verdade, só uma parte do personagem’”, diz Wendell.
É o caso da próxima aventura de Erica Ridley, Hot Earl Summer. O livro conta a história de Elizabeth Wynchester, heroína que, mesmo sofrendo com uma dor crônica debilitante, empunha o machado para defender um castelo contra um aristocrata sedento de poder. Ridley diz que aborda a escrita sobre deficiência como aborda qualquer tipo de diversidade. “Eu queria escrever sobre personagens LGBT+, em que a angústia não viesse do fato de serem LGBT+”, diz ela. “Eu me sinto do mesmo jeito em relação à deficiência. Ela faz parte de quem você é, assim como qualquer outro aspecto da sua cultura, religião ou qualquer outra coisa”.
Ridley também observa que as editoras tradicionais nem sempre estavam abertas as histórias de amor sobre deficiência: “Eu achava que [escrever sobre] aristocratas ricos, brancos e sem deficiência era o único jeito de ser publicada”. Então, o que mudou? De acordo com Ridley, a conversa na indústria só mudou quando o boom da autopublicação provou que havia um mercado para livros românticos com diversidade.
E, à medida que o mercado cresceu, também cresceram os tipos de deficiências que vemos nas páginas. “Nos últimos, eu diria, dez anos, mais ou menos, estamos vendo muito mais histórias sobre neurodivergência”, diz Jayashree Kamblé, professora de inglês que se concentra em romances românticos para o mercado de massa.
A autora de best-sellers Helen Hoang não pensou duas vezes na hora de fazer com que Stella, protagonista de seu primeiro romance, Os Números do Amor (Paralela), fosse autista. Ela ficou atônita com a reação das pessoas. “Foi chocante ver que contar a história de uma mulher com autismo que só queria viver a vida como todo mundo era uma coisa extraordinária”, diz Hoang. Ao escrever, ela se baseou em suas próprias experiências de vida como autista. “Eu não imaginava que estava sendo tão corajosa e revolucionária quando escrevi a personagem, porque ela vinha de um lugar muito familiar”, diz ela.
Para Hoang, escrever Stella foi um ato de amor-próprio. “Na época, foi muito saudável para mim escrever uma personagem com autismo, retratando-a com empatia e não como uma personagem infantilizada de quem você tem dó”.
Os leitores de romances românticos se identificaram com isso. Alguns passaram anos ansiosos por representações positivas da deficiência e da neurodivergência nos livros que amavam. Mas, às vezes, esse desejo se traduz em pressão para as diferenças serem retratadas apenas positivamente. Matthews diz que já sentiu essa pressão. “Acho que, ao tentar ser uma defensora zelosa da representação da deficiência, às vezes a pessoa sem deficiência se esforça tanto para promover um certo nível de aceitação que não abre espaço para experiências vividas por pessoas que sofreram uma lesão traumática e [ficam] tipo: ‘Estou triste. Perdi uma coisa importante’”.
Embora o gênero tenha dado passos largos rumo a uma representação mais sutil, os romances entre dois personagens com deficiência ainda são raros. A autora Hannah Bonam-Young estava procurando esse tipo de história quando escreveu Minha Melhor Parte (Globo Livros), que acompanha Win, uma mulher com diferença entre os membros, e Bo, um homem – e verdadeiro “namorado dos sonhos” – que tem uma perna amputada.
Bonam-Young diz que era importante para ela escrever dois personagens que tivessem experiências de vida muito diferentes. “Eu queria mostrar que as experiências das pessoas com deficiência variam muito”, diz ela. “Acho que, infelizmente, mesmo com as melhores das intenções, em alguns romances onde apenas um dos protagonistas tem deficiência e são necessárias algumas adaptações, o livro pode virar meio que um panfleto ou um guia de como amar alguém com deficiência”.
Em última análise, Bonam-Young quer ver mais histórias de amor nas quais a deficiência seja normalizada. “Eu realmente espero que possamos continuar essa onda de mais sutileza e mais nuances, e menos ‘perfeccionismo’”, diz ela. “Somos só pessoas confusas em corpos com deficiência e cometem erros e, sabe como é, se apaixonam”.
Em uma sociedade onde as pessoas com deficiência raramente são protagonistas, dar visibilidade às suas histórias de amor é uma coisa poderosa. Wendell concorda: “A mensagem do romance romântico é: toda pessoa merece ser amada, ninguém precisa se adequar a algum padrão para ser amado, todo mundo merece ser amado exatamente como é”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Se você se interessou em ler um romance romântico sobre personagens com deficiência:
- Mimi Matthews recomenda The Arrangement, de Mary Balogh (sem edição nacional)
- Erica Ridley recomenda Can’t Escape Love, de Alyssa Cole (sem edição nacional)
- Hannah Bonam-Young recomenda Vê se cresce, Eve Brown, de Talia Hibbert (Paralela)
- Helen Hoang recomenda qualquer coisa de Chloe Liese
- Jayashree Kamblé recomenda The Spymaster’s Lady, de Joanna Bourne (sem edição nacional)
- Kalyani Saxena recomenda The Winter Companion, de Mimi Matthews.
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