Com seus traços abreviados e indistintos, ela olha com expressão vazia para o nada. Uma touca de renda mantém presos os cabelos escuros, com exceção de algumas mechas que emolduram o rosto. Às suas costas, vê-se um palacete rural e uma ilustração de Elizabeth Bennet, sua mais célebre criação. Esse é o retrato de Jane Austen que aparece na nova cédula de 10 libras, divulgada pelo governo britânico na terça-feira, 18, data do bicentenário da morte da escritora. É só mais um exemplo do processo de reconfiguração e reinterpretação a que ela foi submetida, e que resultou em sua ascensão à condição de sensação literária mundial.
Austen nasceu em 16 de dezembro de 1775. Foi à escola por algum tempo, mas a despesa se mostrou excessiva e acabou se educando na biblioteca de seu pai. Passou a adolescência escrevendo histórias de uma alegria anárquica e espalhafatosa, em que personagens femininas se envolviam em episódios de embriaguez e violência. Acredita-se que tenha recebido uma proposta de casamento, mas acabou optando pela condição financeiramente precária de solteira. Escreveu seis romances, dois dos quais publicados postumamente; a renda que obteve com eles foi ínfima. Morreu aos 41 anos, tendo sido sepultada no cemitério da Catedral de Winchester.
Depois de sua morte, apesar de Austen ter demonstrado tino comercial ao optar por permanecer como detentora dos direitos autorais de suas obras mais maduras, a família passou a retratá-la como uma mulher tímida e recatada, que escrevia por prazer, não para auferir lucros. Sua irmã Cassandra tornou ilegíveis trechos de muitas de suas cartas e destruiu outras tantas. O epitáfio de Austen, escrito por seu irmão James, não faz menção a sua carreira literária, registrando apenas sua “bondade, devoção, fé e pureza”. Naquela que é considerada a primeira biografia da escritora, seu sobrinho James Edward Austen-Leigh afirma que a “boa vida cristã” de Austen foi “singularmente desprovida” de grandes acontecimentos.
O que fez com que essa mulher aparentemente tão sem graça viesse a se tornar uma das mais bem conhecidas escritoras britânicas? Num primeiro momento, foi o fato de ela ter sido a precursora de um novo tipo de romance: uma narrativa realista inteiramente derivada do cotidiano. O editor John Murray recusava obras como Frankenstein, de Mary Shelley, mas aceitou publicar Emma porque não encontrou em suas páginas “nenhum corredor sombrio, nenhuma câmara secreta, nenhuma galeria varrida por ventos uivantes, nenhuma gota de sangue brilhando na lâmina de uma adaga enferrujada”. Mas o que há de excepcional em Austen é o modo como ela combina esse realismo com um novo estilo narrativo, em que a voz do narrador se alterna habilidosamente com os pensamentos mais íntimos dos personagens. Esse “discurso livre indireto” permite ao leitor ver, pensar e sentir exatamente como o personagem, ao mesmo tempo em que mantém um distanciamento crítico e viabiliza a alternância entre diversos pontos de vista. Trata-se de recurso original e inventivo.
Em princípios do século 20, o movimento sufragista incluiu Austen em seu panteão de heroínas, exibindo nas passeatas faixas com seu nome, como símbolo e prova da excelência intelectual das mulheres. Como diz a professora da Universidade Estadual do Arizona, Devoney Looser, em The Making of Jane Austen (“A Construção de Jane Austen”), publicado em maio, algumas ativistas a reinventaram, transformando-a numa “rebelde discreta”, que desferia seus ataques com sutileza e discrição. “É impossível imaginar Austen se manifestando numa assembleia, e muito menos interrompendo um orador”, escreveu a sufragista Bertha Brewster, “mas é perfeitamente possível imaginá-la ironizando os discursos do (jornalista e deputado conservador) Arnold Ward.” Ao invocar o nome de Austen — que era admirada por homens e mulheres de todas as inclinações políticas —, as sufragistas não apenas ganhavam um reforço de peso para seu movimento —, como também reafirmavam o gênio singular da escritora. Se as mulheres tiveram historicamente de lutar para se fazerem ouvidas, Austen se impunha por seu talento inegável. Leitores de ambos os lados do debate debruçaram-se mais uma vez sobre seus livros.
Fizeram isso de novo durante a 1.ª e a 2.ª Guerras Mundiais, como observa a professora Kathryn Sutherland, da Universidade de Oxford. Os romances de Austen, com suas narrativas delicadas, aparentemente marcadas pela insularidade, eram recomendados para soldados traumatizados pela guerra. Numa das fases mais sombrias da 2.ª Guerra, Winston Churchill encontrou consolo na releitura de Pride and Prejudice (“Orgulho e Preconceito”). O mundo ficcional de Austen era tido como um refúgio, um anteparo contra a realidade; os leitores encontravam ali um retrato da Inglaterra antes da queda.
No entanto, foi na década de 1990 que a Austenmania alcançou dimensões inauditas, graças a uma série de adaptações para a TV e o cinema. Algumas delas — como Metropolitan (1990) e Clueless (“As Patricinhas de Beverly Hills”, 1995) — reencontravam os temas da prosperidade econômica e do status social, tão caros a Austen, nos EUA do século 20. As adaptações de Pride and Prejudice, Sense and Sensibility (“Razão e Sensibilidade”), Persuasion(“Persuasão”) e Emma, que chegaram aos cinemas entre 1995 e 1996, não mediam esforços no trabalho de reconstituição de época.
É comum que roteiristas e diretores abram mão da narração irônica — amortecendo o poder de Austen — e apimentem sexualmente o enredo. A cena em que o Darcy interpretado por Colin Firth sai de um lago com a camisa branca encharcada não está em nenhuma das páginas escritas por Austen. A festejada série Pride and Prejudice, de Andrew Davies, teve audiência semanal de mais de 11 milhões de espectadores no Reino Unido. Quase 4 milhões assistiram à estreia da série nos EUA.
De Chawton House a Chongqing. Embora seja vista como quintessencialmente britânica, a obra de Austen ressoa pelo mundo afora. Na Europa inteira realizaram-se eventos para celebrar o bicentenário da morte da escritora. A Sociedade Jane Austen da América do Norte diz contar com mais de 5 mil sócios; há clubes de leitura em diversos países latino-americanos.
Em 2006, foi criada a Sociedade Jane Austen do Japão. Pride and Prejudice, Emma e Sense and Sensibility tiveram versões em mangá publicadas entre 2015 e 2016. Omangwa Pyungyeon, adaptação em 21 episódios de Pride and Prejudice, ambientada no sistema judiciário da Coreia do Sul, bateu recordes de audiência para o horário em que foi exibida, entre 2014 e 2015. Muitos críticos apontam a influência de Darcy nos protagonistas do teatro coreano.
Em The Genius of Jane Austen (“O Gênio de Jane Austen”), publicado no mês passado, Paula Byrne diz que os chineses veem grande afinidade entre Austen e sua cultura, onde a etiqueta ainda é tão importante quanto era na Inglaterra georgiana. Pride e Prejudice já teve mais de 50 edições na China. Isso talvez reflita o fato de que, no país asiático, a expressão “mercado matrimonial” não é mera figura de linguagem. Em Xangai, os pais de jovens solteiros afluem semanalmente a um evento — descrito como “cruzamento de match.com com feira livre” — onde buscam candidatos a genros e noras. Para as mulheres chinesas, um considerável patrimônio imobiliário e um elevado nível educacional ainda são atributos que fazem um “bom partido”. Byrne observa que o diretor taiwanês Ang Lee foi considerado perfeito para conduzir a adaptação de Sense and Sensibility (1995), uma vez que seus filmes anteriores exploravam “conflitos familiares num contexto de valores chineses tradicionais”.
Mas é na Índia e no Paquistão que o entusiasmo pelos romances de Austen chega a causar assombro. Em ambos os países há sociedades dedicadas ao estudo de sua obra. Adaptações para o cinema acrescentam à atmosfera regencial dos livros de Austen a verve de Bollywood. Bride and Prejudice (“Noiva e Preconceito”, 2004), que se passa na cidade de Amritsar, substitui Elizabeth Bennet por Lalita Bakshi e as danças típicas do campo inglês por casamentos indianos. Kandukondain Kandukondain (2000), produção romântica tâmil, e Kumkum Bhagya (2014), novela da TV indiana, são ambas baseadas em Sense and Sensibility; Aisha (2010) é uma adaptação de Emmaambientada entre a alta classe de Délhi.
A posição econômica e social das mulheres e sua reputação são temas facilmente adaptáveis a diferentes contextos culturais, mas há também especificidades que ressoam de forma particularmente aguda na sociedade paquistanesa, como a importância dos laços familiares, a preferência concedida aos herdeiros masculinos, o sistema de dotes nupciais e a atividade casamenteira de mães e tias zelosas.
E é isso que explica a transformação da pouco conhecida escritora solteirona em superstar literária. Para os leitores ocidentais talvez já não faça muito sentido a urgência atribuída ao casamento ou a ideia de que um relacionamento amoroso pode ser subitamente interrompido por questões pecuniárias. Mas todo mundo um dia conheceu uma namoradeira como Isabella Thorpe ou um sujeito tão encantador quanto sórdido como Henry Crawford. Passados 200 anos, as argutas observações de Austen sobre a vaidade e a insensatez humanas continuam acertar o alvo.
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