Na entrada da Zona de Alienação em volta da Usina Nuclear de Chernobyl, há dois quiosques, pintados de “amarelo-radioativo”. Além de lanches para os turistas que descem ao local do pior desastre nuclear que o mundo já viu, eles vendem artigos com o tema Chernobyl: camisetas estampando o símbolo da radiação, máscaras de gás, ímãs de geladeira coloridos. Perto de um barril de vinho quente há uma série de canecas com pinturas da paralisada roda-gigante de Pripyat (cidade construída para abrigar empregados da usina) e do tristemente famoso reator nº 4, que derreteu na manhã de 26 de abril de 1986.
O tempo estava atipicamente moderado naquele sábado fatídico, e em Pripyat o clima era de festa. Foi então que o teste de segurança marcado para aquela manhã deu tragicamente errado. Anatoly Diatlov, engenheiro da usina, chamou a imensa fusão que se seguiu de “quadro digno da pena do grande Dante”. Enquanto monitores na Suécia detectavam a radiação poucas horas depois, o governo soviético levou três dias para divulgar uma declaração lacônica: “Houve um acidente na estação atômica geradora de eletricidade de Chernobyl”.
Num ponto próximo à usina, um guia turístico chama a atenção para a “boa visão panorâmica dos reatores”. Todo mundo faz selfies. Uma jovem tira fotos da amiga que usa uma máscara de gás e posa tendo ao fundo o sistema de resfriamento da usina. Um homem fotografa a namorada sorridente, que faz com os dedos o sinal de paz.
Os átomos de Chernobyl eram para ser pacíficos. Na União Soviética, a energia nuclear representava o progresso tecnológico e a conquista da natureza pelo homem. Líderes soviéticos a viam como meio de aumentar o poder de seu império. O RBMK (reator de canal de alta potência) era fundamental para seu planos. Propagado como mais poderoso e barato que outros modelos, era também considerado tão seguro que os soviéticos economizaram em estruturas de contenção protetoras. Anatoliy Alexandrov, diretor da Academia Soviética de Ciências, teria afirmado que era seguro o bastante para ser instalado na Praça Vermelha.
No entanto, como funcionários do Ministério de Construção de Máquinas Médias (o sigiloso órgão responsável pela indústria nuclear soviética) sabiam muito bem, o RBMK tinha defeitos fatais. As varetas de controle de bório usadas para diminuir a velocidade das reações levavam grafite, o que significa que, numa paralisação de emergência do reator, as varetas iriam inicialmente acelerar a reação antes de selar o reator. Como escreve Adam Higginbotham em Midnight in Chernobyl, um dos três livros recentes sobre a tragédia e suas consequências, “é como se o freio de um carro funcionasse ao contrário: pisando-se no pedal, a velocidade aumentaria em vez de diminuir”.
Os turistas, na maioria europeus, além de pequeno grupo de chineses e uns poucos ucranianos bem de vida (uma visita individual custa em torno de US$ 400, um mês de salário médio do país), embarcam em ônibus designados como “alfa”, “beta” e “gama”. Alguns se inspiraram para a visita em videogames ambientados na Zona. Outros vieram para ver as ruínas divulgadas no Instagram. Um grupo segue uma jovem guia que usa brincos com o símbolo da radiação. Nesse sentido, escreve Serhii Plokhy em Chernobyl: History of a Tragedy, uma magistral narrativa sobre o episódio, o desastre transformou-se em mito.
Plokhy, historiador de Harvard, cresceu 500 quilômetros a sudeste da usina e desenvolveu uma inflação de tireoide, um indício de exposição à radiação. Vasculhando arquivos abertos com a revolução na Ucrânia de 2013-14, além de documentos conseguidos em primeira mão, ele reconstrói escrupulosamente a calamidade – da construção apressada da usina ao “sarcófago” que cobriu o reator defeituoso três décadas depois. Plokhy mostra como Chernobyl incorporou a falência do sistema soviético e, por sua vez, foi parte do colapso desse sistema, atuando em última análise como catalisador da política de abertura de Gorbachev, a glasnost, e dos movimentos nacionalistas em repúblicas como a Ucrânia e a Lituânia. A descrição de Higginbotham das horas iniciais do derretimento do reator é vívida, mas é o livro de Plokhy que vai contar a história definitiva.
Em nenhum lugar a necessidade de tal história é mais palpável que no interior da Zona de Alienação. “Chernobyl virou uma grife”, lamenta um guia veterano. Ele pega o celular para mostrar um clipe de uma dança idiota de um grupo de visitantes poloneses que começa com um carro avançando por uma ponte próxima. Essa ponte é conhecida na região como “ponte da morte” porque nela muitas pessoas pararam para ver as chamas da fusão do reator e receberam doses letais de radiação. Chernobyl deveria ser um memorial que lembrasse os perigos do excesso de confiança, com um ar mais próximo de um campo de concentração do que o duvidoso parque temático que se tornou.
A atitude de indiferença vem sendo encorajada pela minimização sistemática do impacto do desastre. Estimativas oficiais situam o total de mortes entre 31 e 54, ao lado de muitos milhares de casos de câncer que a radiação provocou. Em 1988, o ministro da Saúde soviético afirmou que estava tudo bem: “Hoje podemos garantir que o acidente de Chernobyl não teve efeitos na saúde humana”. Estudos da Organização Mundial da Saúde e da Agência Internacional de Energia Atômica deram garantias semelhantes.
Em Manual for Survival, uma grande junção de pesquisa histórica, jornalismo investigativo e reportagem com tons poéticos, Kate Brown se empenha em revelar as verdadeiras consequências médicas e ambientais de Chernobyl. Onde fontes oficiais atribuíram o aumento dos casos de doença a triagens mais rigorosas e estresse psicológico, ela encontrou evidências por muito tempo ocultas que sugerem uma história diferente. Seu livro é uma viagem inspiradora e assustadora através de arquivos e de vilas, florestas e pântanos da região da Polésia, entre a Ucrânia e a Bielo-Rússia. Embora seja quase impossível comprovar como causa direta, ela encontra correlações que ligam a exposição crônica à radiação, mesmo em doses baixas, a doenças da tireoide, coração e olhos, câncer, problemas endócrinos e digestivos, anemia, defeitos de nascença e mortalidade infantil.
Quem caminha na área de Chernobyl agora recebe um dosímetro pessoal que bipa sem parar. A velocidade dos bipes aumenta à medida que os níveis de radiação gama sobem. No interior da Zona, turistas disputam os “pontos quentes”, onde os dosímetros entram numa sinfonia de alertas solenemente ignorados. Hoje, a maioria dos visitantes absorve menos radiação em um dia que durante um típico voo transatlântico. Em 1986, precipitações danosas estendiam-se por centenas de quilômetros. Discussões políticas se levantavam em torno das doses de radiação e dos limites dentro dos quais a população deveria ser retirada. Em tempo: a radiação avança pelo meio ambiente – e pelo corpo humano – de maneiras complexas, sobre as quais ainda sabemos muito pouco.
As planícies pantanosas da Polésia, segundo Brown, são especialmente favoráveis à transmissão da radiação para a cadeia alimentar. Manipulações humanas do clima distorciam esse avanço: pilotos soviéticos bombardeavam nuvens na Bielo-Rússia para provocar chuvas radioativas antes que as toxinas pudessem alcançar grandes cidades como Moscou. Na Ucrânia, eles impediam que chuvas inundassem o Rio Pripyat, o que levaria a radiação para o Dnieper, o principal rio do país.
Ainda mais assustadoras são suas descrições de como os isótopos radioativos entram na produção de alimentos. Com medo de não cumprir metas, planejadores soviéticos ordenavam a abatedouros que misturassem carne radioativa com carne “limpa” para fazer embutidos.
Os soviéticos não estavam sozinhos quando se tratava de fazer circular mercadorias envenenadas. Trigo grego contaminado por chuvas radioativas era eventualmente misturado a grãos normais em pacotes de ajuda despachados para África e Alemanha Oriental. Mesmo hoje, Brown encontrou catadores em florestas do norte da Ucrânia que combinam cerejas “quentes” com “limpas” para que a mercadoria atenda aos níveis máximos de radiação para fins de exportação.
Segundo ela, se for possível demonstrar que Chernobyl não teve efeitos na saúde humana, “então os resíduos de testes nucleares, os reatores de uso civil que diariamente emitem radioatividade, o uso generalizado de radiação na medicina e a participação de funcionários, pacientes e espectadores em testes médicos secretos podem ser esquecidos”. Nessa análise, Chernobyl foi uma crise não apenas da União Soviética, mas da civilização moderna. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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