Em 1997, Reed Hastings alugou o filme Apollo 13 – Do Desastre ao Triunfo na Blockbuster e teve de pagar uma multa por atrasar a devolução da fita cassete. Esse pequeno infortúnio o motivou a livrar os cinéfilos das taxas por atraso e criar a própria empresa: a Netflix. Duas décadas mais tarde, a Blockbuster foi à falência e as assinaturas de serviços de streaming superaram as vendas de filmes em mídia física nos Estados Unidos.
Desde 2016, o valor arrecadado por plataformas como Netflix, Hulu e Amazon Prime cresceu 53% enquanto o que se gastou em discos diminuiu 24%. O abismo entre os modelos de negócio parece cada vez maior, tanto que a Criterion Collection, uma das mais respeitadas editoras de DVDs do planeta, se rendeu ao charme do streaming: em parceria com a TCM, lançou o FilmStruck, uma plataforma dedicada aos clássicos do cinema. No Brasil, porém, duas editoras ainda resistem em um cenário nada auspicioso para os DVDs: a Versátil Home Video e a Obras-Primas do Cinema.
+++Com o possível fim do DVD, jovens cineastas perdem referências
Fernando Brito, curador da Versátil, lembra que o mercado já passou por outras crises quando a TV a cabo chegou ao País, na década de 1990, com uma oferta maior de filmes clássicos, e, nos anos 2000, com a proliferação da pirataria pela internet. “O que muda agora é a questão geracional”, afirma Brito ao Aliás. “O jovem de hoje não faz questão da mídia física. A relação que se dá com a arte e a cultura é muito mais líquida, ágil e superficial”, lamenta ele.
Valmir Fernandes, cofundador da Obras-Primas, explica que existem dois nichos principais que ainda consomem DVDs e mantém o mercado funcionando: os colecionadores e os estudantes. Para os primeiros, “a escolha vem de pesquisa de filmes que foram lançados dos anos 1940 aos 1970 e não são encontrados hoje ou não tiveram o complemento de outros títulos”. Já para os que cursam faculdades de cinema, jornalismo e publicidade, Valmir centra os esforços em filmes mudos ou coleções sobre a história do cinema.
“No mercado de nicho para filmes clássicos, europeus, independentes, fora do circuito comercial mais óbvio, você tem um circuito de arte que é ativo”, informa Fernando, e por isso a Versátil e a Obras-Primas lançam recorrentemente caixas temáticas de cinema de gênero, cult e obras antigas em geral. “Na internet, é difícil o acesso a esse conteúdo. A legenda é ruim, há links quebrados… Isso cria uma demanda, porque os colecionadores não deixaram de existir”, diz Fernando.
Colecionismo. Nesse cenário em que o público geral deixou de consumir mídia física, mas ainda existe uma audiência carente por filmes de arte, é inviável competir com as plataformas de streaming em termos de preço, pior ainda publicar um produto descuidado. “Não adianta lançar apenas um DVD simples”, adverte Valmir. “É importante fazer um box que a pessoa ache legal ter na sala, no quarto, uma coisa bonita, para apreciar em mãos.” O cuidado com a edição dos filmes soa semelhante ao que ocorre hoje na indústria fonográfica, em que o LP, após ter quase morrido (no Brasil, não havia mais nenhuma fábrica de vinis até poucos anos atrás), retornou a todo vapor. “O vinil estava morto, renasceu, hoje você tem fábricas sendo abertas”, comemora Fernando. “Tem toda a mística de pegar um álbum, do som, de ter uma relação ritual de abrir os encartes; a geração nova não conhecia o vinil e redescobriu”, completa ele.
Fernando admite que os chamados millennials ainda não demonstraram pelo DVD o apreço que parecem ter adquirido recentemente pelo vinil, portanto também aposta nos colecionadores mais velhos. “A geração anterior ainda valoriza o colecionismo e tem um poder de compra mais elevado. É um nicho, mas que está ávido por conteúdo, portanto é preciso investir justamente na qualidade, pensando no produto não só como o filme em si, mas a cópia restaurada, com qualidade de imagem, conteúdo extra, comentários, depoimentos, uma edição crítica”, explica o curador.
Apesar do crescimento do setor de streaming e da recente investida da Criterion Collection, nem a Versátil e nem a Obras-Primas pensam em migrar para essa área. “Acredito que o colecionador ainda vai existir por um bom tempo. Se eu levasse meu conteúdo para o streaming, estaria dando um tiro no meu pé. O cinéfilo não gosta de ver o filme no computador ou baixar. Ele gosta de ter na mão”, insiste Valmir. Fernando concorda, e ainda tece críticas ao formato atual: “O problema do streaming é que os filmes não ficam em catálogo constantemente. Não é um conteúdo fixo, de referência. É mutável, está no ar por um curto período de tempo e depois sai da disponibilidade.”
Se por um lado a vantagem econômica das mídias digitais parece cada vez maior, por outro a relação mais profunda e duradoura que surge do contato com o material físico ainda pode seduzir os mais jovens. Em 2017, as vendas de CDs e vinis superaram pela primeira vez em anos as receitas do download de música. Se o mercado cinematográfico ainda não seguiu os passos da indústria fonográfica, pelo menos a esperança permanece viva. “Esse renascimento me faz pensar que essa geração millennial e a anterior pode redescobrir a mídia física”, acredita Fernando.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.