Como um massacre na Indonésia ajuda a explicar ditaduras pelo mundo

As articulações para derrubar o presidente indonésio começaram em 1954, com movimentos de rebeldes e mercenários arregimentados pela CIA, que só atingiriam seu objetivo 11 anos depois

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Por Sérgio Augusto

Antes que vingue entre nós a guerra civil diariamente prometida pelo presidente, seus rebentos e alguns dos militares de pijama que os cercam, com mais ênfase e frequência pelo general Augusto Heleno, aprendamos o máximo que pudermos com as lições da História. Esqueçam um pouco a Espanha de 1936 e também o movimento constitucionalista de 1932. Concentrem sua atenção na Indonésia de meados da década de 1960. Aquela sim foi a guerra civil modelo da ala mais paleolítica de nossas forças armadas.

Escultura do artista australiano Dadang Christanto prestatributo aos mortos em 1965 Foto: DADANG CHRISTANTO/NATIONAL GALLERY AUSTRALIA

Para os que a esqueceram Vincent Bevins, jornalista californiano com ampla experiência como correspondente em Londres, no Brasil e Sudeste Asiático, escreveu um livro, longamente pesquisado, densamente informado e muito bem escrito, há pouco editado pela Public Affairs Book, nos EUA, The Jakarta Method (O Método Jacarta), com um subtítulo que em inglês ocupa 15 palavras e 105 caracteres: A Cruzada Anticomunista de Washington e o Programa de Assassinatos em Massa que Configurou o Mundo em que Vivemos. Tem 320 páginas, custa US$ 28 e ainda não foi traduzido.  Aos que julgam conhecer o suficiente sobre a carnificina na Indonésia – o maior banho de sangue do século passado até o tirano Pol Pot promover o seu no Camboja–, adianto que em nenhum outro estudo sobre o tema, nem no relativamente recente The Killing Season, de Geoffrey Robinson, encontrarão um mapeamento tão completo da jacartanização do planeta entre 1945 até nossos dias, com dados precisos sobre a atuação de militares brasileiros durante a ditadura, a partir da Operação Condor, consórcio macabro unindo seis países do Cone Sul, que deixou um saldo de mais ou menos 80 mil mortos, entre os anos 1970-80. Se brasileiro tem memória curta para sua própria história, imagine para a história de um país tão distante daqui como aquela nação arquipélago do Sudeste Asiático. Muitos de nós ainda confundem Suharto com Sukarno, os dois polos da guerra civil indonésia. Sukarno proclamou a independência da Indonésia do domínio holandês em agosto de 1945, mas que só foi sacramentada em 1949. De olho na região e com caraminholas geopolíticas vis-à-vis China, Washington deu corda a Sukarno. Considerava-o um líder independente, impermeável à influência comunista.  Aí os comunistas, à frente de um partido consolidado e forte, começaram a ganhar eleições. E os EUA, com o republicano Eisenhower na Casa Branca, passaram a ver o presidente indonésio com outros olhos.  Liberal, cosmopolita, prestigiado internacionalmente, Sukarno estimulou o diálogo global e solidário entre todos os países e foi um enérgico combatente do que ainda restava do colonialismo europeu, pautas que orientaram a histórica Conferência Afroasiática por ele organizada em Bandung, em 1955. Apóstolo do não alinhamento automático (nem Casa Branca, nem Kremlin) e da autodeterminação dos povos, entrou na lista negra dos americanos por suas relações amistosas com a China maoista. Dois anos antes da conferência em Bandung, Washington dera início a uma sucessão de intervenções criminosas em países aliados, sempre com a desculpa de “combate ao comunismo” e todas fomentadas e articuladas pelos diabólicos irmãos Dulles, John Foster Dulles, no Departamento de Estado, e Allen Dulles, diretor da CIA. O primeiro a cair foi o premiê Mossadegh, porque ousara nacionalizar o petróleo iraniano, e, no ano seguinte, o presidente democraticamente eleito da Guatemala, Jacobo Árbenz. A intervenção na Guatemala foi o primeiro putsch bem-sucedido da CIA na América Latina. Títere de Washington e da United Fruits, Carlos Castillo Armas assumiu o poder, deixando um saldo de 200 mil mortos e uma extensa casta de outros ditadores fardados que nunca entregaram a rapadura. As articulações para derrubar Sukarno começaram em 1954, com movimentos de rebeldes e mercenários arregimentados pela CIA, que só atingiriam seu objetivo 11 anos depois. Sintam-se à vontade para traçar os paralelos cabíveis com o golpe civil-militar que o suicídio de Vargas aqui adiou por 10 anos, pois são pragas com os mesmos componentes genéticos. Suharto, o corrupto usurpador de Sukarno, governando com a assistência de milhares de oficiais e policiais indonésios treinados e doutrinados nos EUA e milicianos armados e envenenados pelas baboseiras pseudofilosóficas da Pancasilia, a doutrina oficial da “Nova Ordem”, comandou a ferro e fogo a caça aos comunistas e demais desafetos do regime, sem exclusão dos liberais desonestamente infamados como comunas. Entre 500 mil e dois milhões de indonésios perderam a vida depois de barbaramente torturados, no que ficou mundialmente conhecido como “Operação Jacarta”.No capítulo dedicado às repercussões da barbárie no Brasil e no Chile, Bevins lembra as pichações que, em 1973, meses antes da derrubada de Allende, apareceram nos muros de Santiago, com dizeres do tipo “Yakarta viene!”. E Jacarta de fato chegou. Na mesma época, um jornal carioca noticiou que um grupo de militares da linha dura fizera uma lista de 30 mil brasileiros, tidos como inimigos do regime, para executá-los ao estilo jacartista. Ao ler a notícia, Millôr comentou comigo, na redação do Pasquim: “Se eu não estiver nessa lista, me mato de desgosto.” Cabalístico ou não, 30 mil foi o número de desafetos que o nosso capitão presidente, quando ainda candidato, ameaçou trucidar se chegasse ao poder. Consultei Bevins sobre as chances de um autogolpe neofascista na atual conjuntura. Embora considere Bolsonaro um “herdeiro direto de uma tradição que vê o assassinato em massa como uma forma legítima de resolver problemas políticos”, o autor de O Método Jacarta não crê que seu governo disponha de apoio nem de competência para consolidar um controle ditatorial ou reproduzir os tipos de atrocidades que vimos ao longo do século 20. Quem sobreviver verá.

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