Como um 'palácio' surrealista feito de hashis revolucionou a arte

Escultura de Alberto Giacometti reproduz sonho da transparência perseguido por arquitetos modernistas, mas com total ausência de utilidade

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Por Sebastian Smee

No início da década de 1930, antes de se voltar para as cabeças tênues e os corpos corroídos por ácido e modelados a partir da vida que o deixaram famoso, Alberto Giacometti fez estranhos objetos de materiais como madeira, gesso, metal e mármore. Pareciam ferramentas ritualísticas ou cenários eróticos estilizados – paralisados – de algum sonho antigo.

'O Palácio às 4 da Manhã' (1932), escultura de Alberto Giacometti Foto: Museum of Modern Art

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Era o apogeu do surrealismo. Sexo e violência – e a ideia de que a arte poderia mediar nossos desejos mais obscuros e desinibidos – encontravam-se em algum lugar bem perto do cerne do movimento, que se inspirava, é claro, nas teorias de Sigmund Freud.

O próprio Freud não gostava muito dos surrealistas. Giacometti também romperia violentamente com o movimento em 1934, desmentindo tudo o que havia feito até então. E, no entanto, muitas dessas primeiras esculturas continuam incrivelmente potentes.

Algumas delas eram planas, como tabuleiros de jogos, ou abertas, como gaiolas. Às vezes, adaptavam aspectos formais que Giacometti – artista suíço que vivia em Paris – enxergava em objetos da África ou do Pacífico sul. Eram abertas ou horizontais, às vezes suspensas por cordas.

A mais famosa dessas primeiras esculturas talvez seja The Palace at 4 a.m [O palácio às quatro da manhã], hoje no Museu de Arte Moderna de Nova York. Giacometti trabalhou nessa obra durante o verão de 1932. Todas as noites ele construía um palácio com pedaços de madeira do tamanho de hashis. E o reconstruía na noite seguinte. No outono, ele entendeu que forma o palácio deveria assumir e executou a versão final em uma única noite.

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O “palácio” derradeiro não tem telhado. Não tem paredes. É como o sonho de transparência perseguido por arquitetos modernistas, cercado – constrangido, na verdade – por uma total ausência de utilidade.

E por alguns “móveis” muito estranhos. A coluna vertebral na gaiola da direita representa a amante de Giacometti à época (pode-se ver quase toda a carreira de Francis Bacon saindo dessa imagem), enquanto a figura matronal à esquerda representa a mãe de Giacometti – “como ela aparece”, escreveu ele, “nas minhas primeiras memórias”.

As três telas opacas atrás dela aludem, explicou ele, “à cortina que vi quando abri os olhos pela primeira vez”. Uma tela transparente – uma lâmina de vidro – pendura-se horizontalmente ao lado de uma estrutura côncava em forma de calçadeira, com uma pequena bola presa à sua base, possivelmente representando o artista. E o esqueleto do pássaro, suspenso por cordas, simboliza os pássaros que anunciavam a chegada da manhã naquele verão e, em particular, acrescentou Giacometti, “a própria noite antes da manhã em que nossa vida juntos entrou em colapso”.

Na verdade, não precisamos de nenhuma dessas pistas interpretativas, que (como boa parte da arte surrealista) às vezes parecem kitsch e triviais – reduzindo as paisagens metafísicas dos sonhos a anedotas baratas.

Mas é interessante agarrar-se à ideia – ou à memória, mesmo ao desejo – de um amor desmoronado dentro de um “palácio” – com suas associações de luxo e vastidão – que se reduziu a um esqueleto frágil do tamanho de uma casa de bonecas. Interessante também ponderar a tensão entre amantes e mães, entre as coisas que pairam no ar e as coisas que ficam no chão. E interessante, por fim, deter-se na evocação de um tempo – quatro da manhã – em que quase ninguém está acordado e o mundo inteiro parece ventar por suas defesas desaparecidas.

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