THE NEW YORK TIMES - Conforme fãs de Didion peregrinavam para Hudson, Nova York, onde uma casa de leilão expôs objetos da escritora para venda em novembro, muitos caminhavam diretamente para uma pintura: Em tons de rosa, bege e castanho, a obra capturou uma jovem Joan Didion angustiada, de testa franzida. Esta tela ficava pendurada atrás do sofá de forro branco da autora, entre seus óculos escuros Cèline, cadernos de notas e fotos de família.
“Ele captura sua atenção assim que você entra na mostra”, afirmou Lisa Thomas, diretora de belas artes na Stair Galleries, a casa de leilão que organizou a venda. O retrato também a cativou, afirmou Lisa, assim que ela o viu.
“Minha primeira dúvida”, afirmou Lisa, “foi, ‘Quem pintou isso?’”. Didion e seu marido, John Dunne, foram amigos de muitos artistas. Entre as obras oferecidas no leilão estavam trabalhos de Annie Leibovitz, Richard Diebenkorn e Cy Twombly. Mas a autoria desse retrato era um mistério.
Além de uma assinatura e uma data — L. Johnson, 1977 — muito pouco se sabia a respeito de quem o havia pintado, por que ou como a pintura havia chegado a Didion. Pesquisas empreendidas pela casa de leilão tinham se provado inúteis. A descrição original no catálogo, afirmou Lisa, bebia de uma anedota apócrifa que circulava entre a família de Didion e produzia mais dúvidas que respostas: “Um detento pintou este retrato a partir da foto na parte posterior da sobrecapa de ‘A Book of Common Prayer’ [Um Livro de Orações Comuns]. Ele foi dado de presente a Didion, mas não existem registros a respeito dos detalhes”.
A escritora, que morreu em dezembro de 2021, claramente o valorizava. O retrato pintado a óleo sobre uma tela de 114 cm por 114 cm foi pendurado proeminentemente na sala de jantar de Didion em Nova York. Ela foi fotografada diante da tela durante entrevistas ao longo dos anos. Mas sem nenhuma informação de procedência além de ter sido propriedade de Didion, a pintura foi listada como Lote 4 de 224, com valor estimado entre US$ 3 mil e US$ 5 mil — um dos muitos itens de seu patrimônio a serem vendidos para levantar fundos para assistência de pacientes de Parkinson e pesquisa na Universidade Columbia; e para bolsas de estudos em literatura para mulheres na Faculdade Municipal de Sacramento.
Havia algo de cativante a respeito da pintura e sua história nebulosa
Os lances preliminares provaram que o instinto de Lisa fora correto: havia algo de cativante a respeito da pintura e sua história nebulosa. Até a manhã do leilão, em 16 de novembro, a obra já tinha recebido online lances de até US$ 10 mil. Minutos após o início do leilão, uma guerra de lances irrompeu, com valores saltando para a casa dos US$ 40 mil — e logo US$ 60 mil.
“Estamos em US$ 110 mil, US$ 110 mil”, afirmou o leiloeiro Colin Stair, anunciando o lance vencedor. “US$ 110 mil, dou-lhe uma, dou-lhe duas…”, afirmou ele. “Vendido por US$ 110 mil.”
O retrato rendeu o lucro mais alto ao leilão — maior que o de obras assinadas por artistas reconhecidos. Após anos na privacidade do lar de Didion, a pintura estava sob os holofotes do público pela primeira vez, encontrada facilmente online, no catálogo da casa de leilão e na cobertura da imprensa a respeito da notória venda.
E com essa notoriedade surgiram as primeiras pistas em anos a respeito de suas origens: dois e-mails que prometiam, respectivamente, contar “a história completa” e corrigir as concepções a respeito da pintura.
As mensagens chegaram na última semana de lances do leilão, afirmou Lisa. Uma era de um técnico de iluminação da Califórnia chamado Bruce Byall, que tinha visto a pintura no website da casa de leilão. O segundo e-mail, que chegou dias depois, era de Larry Johnson, funcionário aposentado da United Way em Palm Springs, Califórnia.
O retrato, afirmaram eles, tinha sido pintado por Leslie Johnson — amigo de vida inteira de Byall e irmão de Johnson.
Nascido nas proximidades de Los Angeles, em 1944, filho de um pastor metodista e uma professora, Leslie odiava seus cabelos ruivos e seu nome, preferindo ser chamado de Les. Em 1958, quando era calouro na Escola Hawthorne de Ensino Médio, Les conheceu na turma de inglês Judy Liber, que se tornou sua eterna confidente. Judy viu Les ganhar “todos os tipos de prêmios estaduais e nacionais” com suas obras de arte, afirmou ela, e então, em 1962, ele ganhou uma bolsa de estudos na Art Center School, em Los Angeles. Mas o coração de Les estava em Berkeley, onde os estudantes já haviam firmado presença no movimento por direitos civis.
“Éramos do tipo de pessoa que fazia ação social, que ia atrás disso”, afirmou Johnson, o irmão do pintor, a respeito de sua origem. “Não bastava acreditar. A gente tinha que transformar convicção em ação.”
Les se juntou ao Comitê de Coordenação Estudantil Não Violenta e, em 1964, foi com o grupo para Clarksville, Mississippi, em um esforço para registro de eleitores. Foi lá que ele ficou profundamente deprimido pela primeira vez, disse Judy: “Ele não estava bem”.
Les foi preso. O pai dele entrou em contato com o Departamento de Justiça para trazê-lo para casa e depois o encorajou a buscar ajuda psiquiátrica em uma clínica.
No ano seguinte, Les convidou Judy para marchar em Selma, Alabama. Seu irmão disse que as viagens o afetaram profundamente. O que ele viu “foi muito dissonante com o que ele considerava certo”, afirmou Johnson. “Isso surtiu um impacto enorme sobre sua saúde mental.”
Posteriormente, Les foi diagnosticado como portador de transtorno bipolar, então chamado de transtorno maníaco-depressivo. Depois de períodos depressivos no inverno, ele começava a “parecer cada vez melhor e melhor, até que saía completamente de si, endoidecia além do concebível”, recordou-se Judy. “Pessoas lembram-se de vê-lo andando fantasiado de pássaro.” Foi durante um desses episódios de mania que ele pintou o retrato de Didion, afirmou ela.
Les era leitor ávido de Didion, um fã que se identificava com o retrato que ela produzia dos anos 60 e devorava cada livro dela logo após a publicação. Ele leu “A Book of Common Prayer” em 1977, quando vivia com o irmão em San Diego. Assim que acabou a leitura, afirmou Judy, Les ligou para ela, para recomendar o “livro belo e brilhante”.
“Ele sempre dizia o quanto adorava esse livro”, afirmou ela, “e ele adorava a foto na contracapa”.
Les começou a trabalhar no retrato naquela mesma semana. “Ele retomava a pintura e garantia que cada pequeno detalhe, cada expressão no rosto dela, fosse completamente registrado — e com rapidez”, afirmou Judy. “De repente, apareceu. Ele disse, ‘Alguém tem de entregar isso para a Joan!’.”Judy se comprometeu em ajudar. Um de seus colegas de trabalho tinha um irmão que era advogado em Beverly Hills. O advogado tinha um amigo que trabalhava em Hollywood e sabia onde encontrar os Didion-Dunnes. A pintura passou de mão em mão, e o amigo do irmão do colega de trabalho de Judy concordou em entregá-la à escritora.
Mas a notícia de que o retrato chegou a Didion jamais percorreu o caminho de volta. “Les não conseguiu acreditar que alguém realmente entregou-lhe a pintura”, afirmou Judy. “Ele queria que o quadro chegasse a ela e queria ter certeza que ela o recebeu.”
Ao longo das três décadas seguintes, Les viveu uma vida plena, apesar de fustigada por suas lutas contra o transtorno mental. Ele se assumiu gay nos anos 70, contou seu irmão. Ele viajou pela Europa, contou Judy, por vezes recorrendo ao escambo de pinturas para hospedar-se em hotéis ou comer em restaurantes. Mas, durante seus surtos maníacos no exterior, afirmou Byall, ele fazia coisas absurdas, como vender apartamentos que não existiam na Grécia, “e eu recebia um telefonema do Departamento de Estado perguntando, ‘Você conhece um Les Johnson?’”.Byall, que conheceu Les “nos primeiros tempos hippies de San Francisco” ia, então, buscar o amigo no aeroporto. “Ele ficava na minha casa dormindo 20 horas por dia durante dois ou três meses”, recordou-se ele. “E então começava a se animar outra vez e saía pelo mundo.”
Les se aproximou do sucesso comercial algumas vezes, afirmou seu irmão, mas “graças a alguma combinação entre seus próprios demônios pessoais e nunca se conectar com um parceiro capaz de promover seu trabalho, ele não viveu o suficiente para ver seus sonhos realizados”.
O retrato de Didion se tornou, ao longo dos anos, referência para o pintor. Les falava com frequência a respeito de seu destino, perguntando a amigos e parentes se eles achavam que a escritora o havia recebido. Quando estava bem, ele acreditava que sim — e que a pintura havia sido valorizada. Quando estava mal, assumia que Didion nunca chegou a ver o retrato; ou pior, que ela o havia descartado.
“Ele sempre se perguntava se ela o tinha recebido ou não”, afirmou Johnson, “se ela gostou, se jogou fora” — foi esta uma das últimas perguntas que Les fez antes de morrer, em 2002, de overdose de OxyContin, que lhe havia sido prescrito em uma clínica residencial em San Francisco. Ele tinha 58 anos.
Durante a cerimônia funerária de Les, Byall decidiu escrever uma carta para Didion informando-lhe que o artista tinha morrido. Por não saber o endereço da escritora, afirmou, ele a enviou para Robert Silvers e Barbara Epstein, cofundadores e editores da New York Review of Books, onde Didion colaborava.
Em janeiro de 2003, Didion respondeu: “Caro Bruce Byall — Estou chocada em saber da morte de Les Johnson. Talvez você conheça alguém que possa vir aqui fotografar quando passar por Nova York — diga-me quando pretende fazê-lo que providenciarei para que alguém esteja aqui”.
Johnson só soube do paradeiro da pintura dois anos depois, em novembro de 2005, quando Judy ligou dizendo-lhe para comprar a edição recente revista “O”, de Oprah Winfrey, que havia publicado uma entrevista com Didion — e uma foto dela sentada sob a pintura de Les.
“Foi a primeira vez que eu soube com certeza que Joan tinha recebido a pintura”, afirmou Johnson. “Ela claramente adorou — pendurou-a na sala de jantar, proeminentemente.”
O fotógrafo Albert Watson, que registrou a imagem, afirmou que posicionou Didion para espelhar a intensidade do retrato, pedindo que ela “apertasse firme os dedos” sobre os joelhos.
“É uma pintura realmente muito boa”, afirmou Watson, citando a “cara de preocupada” como a captura de sua aura. Peter Jones é didionista desde que leu “Rastejando até Belém”, no 1.º ano do ensino médio. “Decidi fazer faculdade de jornalismo por causa da escrita de Didion”, afirmou Jones, que se tornou documentarista.
Antes do leilão, Jones tinha feito uma lista dos itens que queria: as lâmpadas de querosene; o forno holandês Le Creuset; talvez os cobertores de cashmere. O retrato não estava na lista, disse ele em uma videochamada um dia depois do leilão.
Mas, quando os lances começaram, ele se viu comovido por como o pintor “a trouxe à vida”, afirmou ele, como se “a entendesse de dentro para fora”. Quando Stair, o leiloeiro, mencionou que a pintura tinha uma história interessante, Jones ficou intrigado.
Depois disso, afirmou ele, “me deixei levar”. E arrematou a pintura.
Quando Johnson ligou enquanto Jones estava em uma entrevista por vídeo com esta repórter, o comprador e o irmão ficaram animados por se conectar. Johnson disse a Jones que estava emocionado por ele ter adquirido a pintura porque ele havia reconhecido sua potência “mesmo que não tenha sido feita por um pintor famoso, renomado”.
Jones foi às lágrimas quando soube o quanto o pintor quis que Didion possuísse o retrato. Jones descobriu ainda várias conexões entre ele e Les: o documentarista tinha usado imagens da turma de Les Johnson em sua escola de ensino médio em um filme a respeito dos Beach Boys; ele e Johnson frequentam uma mesma cidadezinha no sul da Califórnia.
Durante a vida, os astros nunca se alinharam realmente para seu irmão. Les jamais encontrou reconhecimento, não soube nada de Didion e nunca expôs suas obras em Nova York. Mas suas esperanças acalentadas havia tanto — que ela visse e adorasse o retrato e que seu trabalho fosse visto e admirado por muitos — afinal se realizaram.
“Joan”, afirmou Jones, “sabe disso”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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