Dentre as milhões de vítimas do Holocausto, Bruno Schulz (1892-1942) destacava-se por possuir um dos mais originais estilos literários do século 20. Barbaramente fuzilado por um oficial nazista em sua cidade natal, Drohobycz, no dia em que planejava escapar das tropas alemãs de ocupação, Schulz deixou uma obra reduzida, porém marcante, que a Editora 34 está relançando no mercado brasileiro.
As coloridas e saborosas traduções de Henryk Siewierski saíram pela primeira vez pela editora Imago, na década de 1990, em dois volumes: Sanatório e Lojas de Canela. Em 2012, em capa dura e preço salgado, a Cosac Naify juntou-os em um único, acrescentando quatro contos extras, e chamando de Ficção Completa.
Agora, a 34 está retomando a edição em dois livros, como foi originalmente pensado por Schulz. O próximo, ainda a ser lançado, será Sanatório, com as ilustrações originais feitas pelo próprio autor, e incluirá o ensaio inédito A Mitificação da Realidade. O atual traz as narrativas de Lojas de Canela, os quatro contos extras da edição da Cosac, e ainda um fragmento que jamais havia saído em língua portuguesa: Primavera.
O texto foi ainda submetido à revisão de um dedicado eslavista da nova geração, Danilo Hora, que, de quebra, traduziu e acrescentou, à guisa de posfácio, um valioso texto crítico de Angelo Maria Ripellino.
Conhecido no Brasil sobretudo por seus livros sobre o teatro russo, Ripellino propõe um interessante paralelo entre a prosa de Schulz e a pintura de seu contemporâneo Marc Chagall. Para ele, o escritor polonês “transfigura Drohobycz, introduzindo encantamentos em sua existência laboral, assim como Chagall transmuda Vítebsk numa alegre paisagem de fábula com cabanas empenadas, violinistas nos telhados e uma multidão de ‘viajantes do céu’”.
Afinal, estamos falando de um daqueles autores que, de tão originais, obrigam estudiosos e críticos a mobilizar uma multidão de referências, na tentativa de darem conta de seu estilo. O caráter poético de sua prosa – que reverbera em autores contemporâneos brasileiros como Evandro Affonso Ferreira – faz pensar no simbolismo russo, ou no acmeísmo de Mandelstam, enquanto a riqueza plástica e imagética de suas metáforas – ele mesmo era desenhista – pode remeter à relação profunda dos futuristas russos com as artes visuais.
No panorama polonês, ele é colocado como uma espécie de antípoda de Witold Gobrowicz (1904-1969), e as angústias do professor de desenho da pequena cidade da Galícia, na periferia do Império Austro-Húngaro, parecem de certa forma refletir as de outro súdito imperial: um certo Franz Kafka, cujo O Processo Schulz verteu para o polonês. Em Lojas de Canela, a relação se torna especialmente evidente no conto As Baratas, em que o pai do narrador, “todo nu, sarapintado de manchas negras de totem, riscado pelas linhas das costelas, pelo desenho fantástico da anatomia que transparecia, ficava de quatro”, e acaba, por fim, por se transformar no repugnante inseto.
Publicado em 1934, e nascido dos pós-escritos das cartas que ele enviara à poeta Debora Vogel, Lojas de Canela marcou a estreia literária de Schulz. O título, como ele explica no conto que dá nome ao livro, vem “daquelas lojas tão atraentes e singulares, esquecidas nos dias comuns”, devido à “cor dos lambris escuros com que são revestidas”.
Esse mesmo conto pode ser tido como a síntese da sensibilidade e do olhar peculiar de Schulz. Ainda garoto, ele é despachado, à noite, pelas ruas de Drohobycz, para buscar a carteira de seu pai, que a havia esquecido em casa. A tarefa, aparentemente banal, transfigura-se em uma “viagem luminosa na noite mais clara do inverno”, na qual, “como um astrolábio de prata, o céu abria o mecanismo do seu ventre, exibindo em infinitas evoluções a matemática dourada das suas rodas e engrenagens”. Nada mais saberemos da tal carteira extraviada, que perderá completamente a importância diante do encantamento noturno.
Nem tudo é idílico na evocação que Schulz faz de sua Itabira polaca. Há paródia, ironia e sensualidade à medida em que acompanhamos sua peculiar relação com o pai, um comerciante excêntrico que, “como não estava arraigado no coração de nenhuma mulher, não podia também fincar raízes em nenhuma realidade”.
Como afirma Ripellino, “os contos de Schulz constituem um ciclo único de recordações de infância, um álbum ofuscante de pequenos quadros coloridos, figuras com sabor de pinturas dominicais, permeadas de parlapatório, de ironia, de jogos clownescos”. Em sua Drohobycz, “vê-se mais magos e extravagâncias do que puderam ver em seu tempo os paladinos encantados na floresta de Ardenas”. Se você nunca leu Bruno Schulz, não sabe o que está perdendo.
*IRINEU FRANCO PERPETUO É TRADUTOR E CRÍTICO
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