Ao apresentar ao leitor a antologia Contos (Quase) Esquecidos de Machado de Assis, o crítico literário João Cezar de Castro Rocha, professor titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), faz um pequeno prólogo em que analisa o papel de Shakespeare na literatura do escritor brasileiro, em particular a estrutura de sua peça Henrique V. O título desse prólogo, A Plasticidade do Clássico, remete a uma palestra proferida pelo poeta T. S. Eliot (1888-1965) em outubro de 1944, na Virgil Society. Em tempos de guerra, com bibliotecas e livrarias fechadas, situação semelhante a que enfrentamos nesta pandemia, Eliot lamentava não ter acesso ao famoso ensaio de Sainte Beuve sobre o que significa um clássico. Assim, foi obrigado a refletir sobre a pergunta sem a ajuda do texto do crítico francês (1804-1869). Eliot, elegendo Virgílio como o clássico europeu por excelência, passou a discorrer sobre seu legado, afirmando que o autor da Eneida era incontornável. Um clássico, portanto.
O mesmo se pode dizer de Shakespeare e Machado de Assis. Eliot, nessa conferência, associou a palavra clássico à maturidade. Um clássico, justificou, só pode emergir numa sociedade madura. É a importância de uma civilização e sua linguagem o que dá ao clássico sua universalidade. Christopher Marlowe (1564-1593), comparou Eliot, podia ser bom como Shakespeare (1564-1616) na juventude, mas dificilmente seria Shakespeare, até mesmo por ter morrido jovem (numa briga de taverna) e não ter atingido a maturidade. Uma literatura madura, concluiu Eliot, tem a história por trás dela. Assim também os grandes autores. Dante, para Eliot, era um clássico porque em sua Divina Comédia se percebe claramente a presença dos clássicos na moderna literatura europeia, embora Dante fosse mais “provinciano’ que seu ídolo Virgílio, seu guia em sua peregrinação pelo espaço metafísico, cuja missão, segundo Eliot, foi revelar a Dante uma visão a que jamais teria acesso sem seu mentor. Já Chaucer, segundo ele, não se equipara a nenhum dos dois. Claro, é possível alegar que se trata de um ponto de vista particular, mas quando muitos consideram Machado de Assis um clássico, a ponto de entrar no cânone de exigentes críticos estrangeiros (Harold Bloom, para citar apenas um deles), não há muito o que se discutir sobre a pertinência de classificar o autor brasileiro de “clássico”. A literatura brasileira moderna se divide entre antes e depois de Machado. Quem mais poderia, no século 19, redefinir o velho diálogo entre Adão e Eva com reticências, exclamações e pontos de interrogação, como fez o autor, em 1880, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (o conteúdo da conversa entre Brás Cubas e Virgília, no capítulo 55, resume-se a linhas pontilhadas que sugerem um ato um tanto licencioso entre ambos). Dito isto, passemos à antologia publicada pela editora Filocalia. Nela estão agrupados 30 contos, 11 deles (das duas centenas que escreveu) nunca coletados em livro pelo autor e todos abordando temas que eram caros a Machado: a música, a literatura, a filosofia, a política e a escravidão. Alguns foram publicados em livros como Contos Fluminenses (1870). Histórias da Meia-Moite (1873), Papéis Avulsos (1882) e Relíquias de Casa Velha (1906), o derradeiro. Outros fogem do cânone machadiano. Castro Rocha se debruçou sobre o autor em formação, não no Machado consagrado, adotando o critério cronológico em sua seleção. Da divisão temática eleita pelo organizador, os contos que relacionam música e literatura confirmam a afinidade de Machado com o mundo lírico. A história de Inácio, filho de um instrumentista da capela imperial, que aos 10 anos já mostrava um talento incomum para a música, introduz o leitor nesse universo (no conto O Machete) ao mesmo tempo austero e sensual. Violoncelista, ele perde o pai e a mãe e, ao tocar pela primeira vez para a mulher Carlotinha, decepciona-se ao perceber que vivem em mundos diferentes. O que é belo para ela, é severo e melancólico para ele. No final, a loucura toma conta de sua alma solitária e traída, que encontrou na vida poucos interlocutores. Em Um Homem Célebre (1888), Pestana, frustrado compositor de polcas com sonhos de compor sinfonias (nunca esquecendo que Machado era um beethoveniano ardente), se vê dividido entre o sucesso popular de suas polcas e o mundo erudito, incorporando uma dúvida que paira sobre o exercício de muitos músicos brasileiros do período. Igual drama é vivido por outros personagens na primeira parte da antologia, destacando-se entre eles o de Romão no conto Cantigas de Esponsais (1883), um maestro paralisado diante de sua inabilidade como compositor. Na segunda parte da antologia, o organizador Castro Rocha chama a atenção para a violência de sociedades escravocratas como a brasileira, citando em especial o conto Mariana (o de 1871, pois existe outro com o mesmo título). A coragem de Machado de denunciar a impossibilidade do diálogo interclassista e inter-racial no Brasil do século 19 já derruba qualquer argumento contemporâneo de que o escritor foi omisso em relação ao preconceito e à escravidão, sendo ele mesmo descendente de negros. Machado não só manifestou seu repúdio à hipocrisia dos brancos como culpa os caucasianos europeus de provocar a morte dos afrodescendentes. Mariana, apaixonada pelo sinhozinho branco, toma veneno, forma de sair de um mundo que finge aceitar os negros, mas só na aparência. Foi esse Brasil janusiano que Machado retratou em seus contos.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.