As criações mais radicais da escritora estadunidense Gertrude Stein (1874-1946), elaboradas entre as décadas de 10 e 20 do século passado, têm chegado ao Brasil em doses homeopáticas, talvez para que se tenha tempo de absorvê-las. A editora Jabuticaba lançou recentemente Botões Tenros, em excelente tradução de Arthur Lungov, que assina também o posfácio do livro.
Botões Tenros, publicado originalmente em 1914, se divide em três partes – Objetos, Comida e Quartos –, as quais, por meio de verbetes de uma possível enciclopédia, apresentam uma série de objetos. Mas não espere o leitor encontrar nesses “verbetes”, escritos com a característica pontuação da autora, quaisquer explicações racionais sobre eles.
Em Comida, por exemplo, o leite é descrito como “um ovo branco e uma panela colorida, um repolho mostrando assentamento, um aumento constante [...]”, enquanto o açúcar é “uma sorte violenta e uma amostra inteira e até então quieta”. Sorte violenta terá o leitor quando descobrir que ler esse livro de Stein equivale a “cozinhar”, ou seja, “é o reconhecimento entre súbitos e quase súbitos bem pequenos e largos buracos”, para me valer uma das frases intrincadas e saborosas de Botões Tenros.
A obra de Stein requer, talvez, um leitor disposto a experimentar um modo diferente de leitura de ficção. Tenho a impressão de que se aprende a ler literatura para resumir o enredo e preencher uma “ficha de leitura”, a fim de provar, sobretudo na escola, que se tornou leitor. Há, contudo, outras formas de leitura, além dessa guiada pelo enredo. O ato de ler, afirma o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, implica uma série de sensações que são “mais ou menos características para a leitura de uma frase impressa; não é difícil trazer à memória tais sensações: pense nas sensações de empacar, olhar mais de perto, equivocar-se na leitura, maior ou menor fluência na sequência de palavras, entre outras” (Investigações Filosóficas, tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan).
A leitura de Stein tem a ver com essas e outras sensações. Em Botões Tenros, a escritora quebra intencionalmente as expectativas da leitura convencional, de maneira que a primeira sensação que provoca no leitor não é a de entendimento imediato, mas, diria, a de perplexidade diante de frases que põem em xeque a gramática e o uso normatizado de palavras comuns à língua (inglesa, no caso). Vale destacar, porém, que Stein não usa neologismos, diferenciando-se nesse aspecto de outros escritores experimentais do início do século 20, como Joyce, por exemplo.
Na parte do livro dedicada a objetos, há um “verbete” intitulado “Uma Pequena chamada Pauline”. A primeira pergunta que vem à mente do leitor incauto é: não estaria esse verbete no lugar errado? Em seguida, lê-se: “Uma pequena chamada qualquer coisa apresenta arrepios. Venha e diga o que imprime todo dia. Uma inteira parca melancia. Não há papa”. Stein, contudo, parece dar uma pista ao leitor ao afirmar que “se absurdo então é chumbado e quase exato onde há uma cabeça estreita”. O que a escritora parece ensaiar é uma volta à infância, quando ainda podia nomear livremente as coisas sem que elas se cristalizem em um único conceito.
Em A Escada de Wittgenstein, em tradução de Aurora Bernardini e Elizabeth Rocha Leite, a crítica literária Marjorie Perloff dedica algumas páginas para discutir a gramática da escritora, mais especificamente de Botões Tenros, e a sua relação com a teoria formulada pelo filósofo austríaco. Perloff destaca que aquilo que Wittgenstein discute já havia sido colocado em prática 20 anos antes pela autora de A Autobiografia de Alice B. Toklas. Segundo a crítica, diante das frases de Stein, os leitores “quase invariavelmente reagiriam da maneira que Wittgenstein chama com referência à frase “Milk me sugar”, de modo “espantado-boquiaberto”. Segundo o filósofo, é assim que se reage quando se testam os limites da linguagem, quando se usa uma combinação de palavras que “está excluída da linguagem, retirada de circulação”.
”Desconfiar da gramática é o primeiro requisito para se filosofar”, diz Wittgenstein, como recorda Perloff. Stein meditava seriamente sobre a gramática inglesa, e o que lhe interessava era o jogo e as múltiplas possibilidades de interpretação de um texto. Lê-se em Botões Tenros que “O momento em que há quatro opções e há quatro opções em uma diferença, o momento em que há quatro opções há um tipo e há um tipo. Há um tipo. Supondo que há um osso, há um osso[...]”. No Brasil, os jogos de Stein e a filosofia de Wittgenstein reverberam, por exemplo, na obra de Luci Collin e na de Sérgio Medeiros.
BOTÕES TENROS
GERTRUDE STEIN
EDIÇÕES JABUTICABA
148 PÁGINAS R$ 38
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