Peter Morgan pode ser considerado o que no Reino Unido se chama de “royalist” – um devoto, e defensor, da família real e da monarquia. Na verdade, é difícil encontrar alguém mais obcecado que ele pelo clã Windsor e sua história. Nos últimos 20 anos, o roteirista inglês escreveu dois filmes (A Rainha, de 2006, e A Outra, de 2008), uma peça de teatro (The Audience, de 2013, sobre a relação da rainha Elizabeth II com seus primeiros-ministros) e duas séries de TV sobre o tema – Henrique VIII, de 2003, e o fenômeno The Crown, cuja primeira parte da sexta e última temporada chegou à Netflix nesta quinta-feira, 16.
E, como bom monarquista, Morgan sabe que o futuro e a relevância da família real britânica se encontra agora nas mãos do rei – ex-príncipe – Charles III. Portanto, não é de se estranhar que os novos episódios sigam a reabilitação do personagem iniciada na temporada passada, após o quarto (e melhor) ano da série ter se esbaldado com o retrato do péssimo marido que ele foi para Diana.
O problema disso é que a única forma encontrada por Morgan de fazer Charles – um dos seres mais insossos e desinteressantes a ocupar o trono inglês – parecer inteligente, sensato e um líder nato é tornar todos ao seu redor subitamente estúpidos e incapazes de lidar com a própria vida.
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O resultado é provavelmente uma leva dos quatro piores episódios (os seis finais só serão lançados no dia 14 de dezembro) que The Crown já produziu. Esta primeira parte da temporada final narra basicamente os dois últimos meses de vida de Diana (Elizabeth Debicki).
O acidente trágico que deu um brusco fim à vida da ex-princesa é introduzido já na primeira sequência, seguido por um “oito semanas antes” que busca explicar como as coisas chegaram até ali, e vai até o funeral e o luto planetário – dando a Morgan a chance de revisitar nos 50 minutos do quarto episódio a mesma história que já havia contado em A Rainha, a partir de um novo ponto de vista.
Novo porque, nesta temporada, The Crown deixa bem claro que Elizabeth II (Imelda Staunton) não é mais sua protagonista. Durante os quatro episódios, a personagem aparece em pouco mais que cinco ou seis cenas com diálogos relevantes, sem nenhum eixo narrativo próprio, sendo colocada em segundo – ou quinto – plano sem muita cerimônia.
Mas não é só ela quem sofre: para tornar Charles (Dominic West) o novo centro racional da série, todas as mulheres ao seu redor parecem ser destituídas de qualquer inteligência ou domínio sobre a própria vida. Camilla Parker Bowles (Olivia Williams) só é mencionada em referência à sua festa de aniversário de 50 anos, organizada por Charles e sobre a qual ela não parece ter muito a dizer ou fazer. E Diana...
Bem, Diana. Longe da mulher complexa e indômita criada por Emma Corrin na quarta temporada, a personagem é repentinamente transformada por Morgan num ser supérfluo e superficial, mais interessada em passar dias e dias tomando sol num iate milionário enquanto lê revistas de fofoca do que em assumir as rédeas da própria vida.
Seu romance com o bobão Dodi Fayed (Khalid Abdalla) é apresentado como uma artimanha arquitetada pelo pai dele, Mohamed Al Fayed (Salim Daw), para se infiltrar na realeza britânica. Dodi e Diana são vistos apenas como duas marionetes sem agência ou vontade própria, sendo manipuladas pelo plano maquiavélico de um vilão digno de novela das seis.
Aqui, é necessário admitir que The Crown sempre foi um grande novelão de época elevado pelo virtuosismo visual possibilitado pelos cofres da Netflix e pelo efeito de real(eza) conferido pelos personagens envolvidos. Contudo, o romance de Diana e Dodi é especialmente problemático por dois motivos.
O primeiro é que, numa série quase desprovida de personagens não-brancos (por motivos óbvios), os dois primeiros que assumem um papel de destaque na trama, Mohamed e Dodi, são retratados como antagonistas interesseiros – especialmente Mohamed – definidos primordialmente como pessoas que não têm os mesmos valores e o privilégio da indiferença social oferecidos pelo berço de ouro dos Windsor. O patriarca Al Fayed é apresentado como um vilão a quem só falta o bigode a ser torcido, numa construção narrativa que beira o racismo.
E o segundo é que The Crown encerra a história de Diana como alguém essencialmente incapaz de tomar as decisões sobre sua própria vida. Debicki é uma boa atriz, mas desamparada pelos diálogos fracos e pela persistência de Morgan em fazer da personagem uma mulher impulsiva e sem a capacidade de enxergar um palmo à frente do seu nariz, em oposição à visão estratégica e ao racionalismo pragmático de Charles, sua performance nunca vai além de uma caricatura bem feita, uma imitação dos trejeitos e da voz de Diana.
Na visão do roteirista e da série nesses quatro episódios, a ex-princesa era uma boa mãe, um ímã de paparazzi e nada muito mais que isso – e sua morte é uma chance de redenção para Charles, que luta pelo direito da ex-mulher ser enterrada com as honras de membro da família real.
Morgan nunca foi um escritor particularmente sutil, mas a montagem em que ele justapõe Diana sendo implacavelmente perseguida por fotógrafos a cenas do seu filho adolescente William (Rufus Kampa) caçando seu primeiro cervo é de um especial mau gosto. Ao lado de Charles, aliás, é o primogênito do pior casamento da história que ganha mais espaço nessa última temporada, já tratado como futuro ocupante do trono inglês – seu romance com Kate Middleton deve ser introduzido na parte final em dezembro.
No entanto, se seguido o tom desses episódios iniciais, a sensação é que Morgan e The Crown perderam a perspectiva histórica capaz de conferir subtexto à trama da série, limitando-se a narrar eventos marcantes. Sem isso, restaria a bela direção de fotografia do brasileiro Adriano Goldman, mas até dela o seriado parece ter aberto mão, em favor de um visual sóbrio e realista que parece ressaltar o aspecto mais contemporâneo da trama. O resultado se tornou, então, e finalmente, um mero novelão das seis.
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