Quando os intelectuais se arvoram em reis-filósofos, se envolvendo com o poder, quase sempre fazem tristes figuras, degenerando em bobos da corte patéticos e/ou nefastos. Desde o próprio Platão, que foi branquear o tirano de Siracusa e teve de fugir correndo da Sicília. O pensador mais influente do século 20 (Heidegger), pai do pós-modernismo de Foucault e Derrida, foi nazista de carteirinha e nunca se retratou (morreu em 1976). Quanto a intelectuais stalinistas ou maoístas, foram às baciadas (e até hoje circulam uns fósseis por aí).
Felizmente, há esplêndidas obras dissecando tais mancadas, desde O Ópio dos Intelectuais, de Raymond Aron, a A Mente Imprudente, de Mark Lilla – este já no título um tributo a melhor de todas: A Mente Cativa, o clássico de Czeslaw Milosz, que acaba de ser editado no Brasil (Âyiné). E melhor pelo menos por duas razões: a prosa suntuosa do autor (Nobel de literatura em 1980) e sua experiência em primeira mão. Além deste ensaio, Miloz é um dos maiores poetas do século 20, sem falar no fabuloso romance A Conquista do Poder.
Milosz era polonês, mas passou a infância e a juventude na Lituânia, incorporando quatro idiomas diferentes. Na 2ª Guerra Mundial, estava em Varsóvia e na resistência contra a ocupação nazista. Foi um dos raros literatos poloneses a defender os judeus e um dos primeiros a escrever poemas sobre o Holocausto, como testemunha ocular da aniquilação do Gueto de Varsóvia.
Com a derrota de Hitler, a Polônia (já dividida irmãmente entre o Fuhrer e Stalin no pacto de 1939) virou um satélite do império soviético, como o resto da Europa Oriental. No âmbito político, o cardápio foi digno de Lucrécia Bórgia: partido único, prisões, tortura e execução de opositores, censura granítica. Na esfera literária, só publicavam os autores dóceis e praticantes do “realismo socialista”, obras didáticas que deveriam espelhar a luta de classes e o porvir radioso do comunismo.
Milosz escreveu A Mente Cativa no exílio, em 1953 (ano da morte de Stalin) analisando o fascínio do stalinismo sobre os intelectuais das chamadas “democracias populares” (que não eram nem democracias, nem populares). Ele aborda a vida e obra de quatro autores poloneses contemporâneos (a que se refere por apelidos), com matizes de adesão ao regime. Que os quatro empalideçam hoje diante da proeminência de Milosz, é uma espécie de justiça poética.
O melhor capítulo é sobre 'Gama' (o poeta e editor Jerzy Putrament): ““É difícil invejar esse homem pela escolha que fez e por seu saber sugado da árvore do conhecimento do bem e do mal. Olhando para seu país, ele sabe que seus habitantes enfrentam uma dose cada vez maior de sofrimento. Olhando para si mesmo, sabe que nenhuma palavra que disser será sua. Eu sou um mentiroso — ele pensa de si mesmo e acredita que o determinismo da História é o responsável por suas mentiras. Às vezes, porém, é assombrado pelo pensamento de que o diabo, a quem entregou sua alma, ganhou sua força graças a pessoas como ele, e que o determinismo da História é um produto das mentes humanas”.
Milosz não passa pano nem em si mesmo: “Eu estava disposto a fechar os olhos para muitos fatos hediondos, desde que fosse permitido me ocupar com a métrica do poema e traduzir Shakespeare em paz. Tudo o que posso fazer é constatar que fui embora.” Em Buenos Aires, outro polonês libertário, Witold Gombrowicz, leu o livro e uivou: “O que mais me horroriza e envergonha é que pessoas que eu conhecia como X de repente se tornam Y, mudando de personalidade como quem troca de camisa – agindo, falando, pensando e até se sentindo ao contrário de si mesmas. Como gramofones que só tocam o disco da voz do dono”.
No início da década de 1950, Milosz era adido cultural da Polônia em Washington. Foi transferido para Paris, enquanto sua mulher grávida e o primeiro filho ficaram na capital americana. Depois, convocado para Varsóvia, onde teve o passaporte confiscado e o aguardavam a prisão ou uma bala na nuca (ou ambos). Com a conivência do ministro polonês da Cultura, Milosz conseguiu escapar para Paris, permanecendo seis meses escondido no escritório de uma editora. Só regressou à Polônia em 1981, um ano depois do Nobel.
Na França, Milosz estava sozinho, sem amigos e na pindaíba. E o pior: desconectado da sua língua e de seus leitores – o inferno astral para qualquer autor. Milosz passou seus melhores anos sob um eclipse quase total. Trabalhou como jornalista no serviço polonês da BBC. Na década seguinte surgiu um convite providencial para lecionar na Universidade de Berkeley, na Califórnia – lá fez amizade com o bardo beat Allen Ginsberg, a quem dedicou um poema. Mas só em 1973 apareceu a primeira tradução de Milosz em inglês.
Quando a notoriedade veio com o Nobel, foi um alento agridoce: a esposa dele foi diagnosticada com E.L.A. (o marido virou seu cuidador) e o filho com transtorno bipolar. Em contrapartida, a Polônia finalmente revogou a censura à obra de Milosz. Na visita a Varsóvia em 1981 foi recebido como um herói nacional, um símbolo da resistência cultural ao totalitarismo. Lech Walesa, o líder do sindicato Solidariedade, exaltou Milosz como uma das suas inspirações, e brincou: “Fui preso duas vezes por sua causa!” Em 1993 o velho aedo regressou definitivamente a sua Ítaca, se instalando na Cracóvia. Milosz continuou escrevendo até o fim, morrendo em 2004, aos 93 anos.
Com a queda do Muro de Berlim e o colapso da URSS, houve quem vaticinasse a multiplicação das democracias pluralistas e abertas no mundo inteiro. Só que não - como atestam hoje o populismo despótico de Putin, Maduro e Orban (entre tantos outros) e o autoritarismo mercantilista de Xi Jinping. Sem falar na inquisição digital dos justiceiros sumários das redes sociais.
Agora poucos intelectuais têm o topete de falar da “verdade” sem um certo constrangimento. Muitos optaram por crer que a verdade não passa de um construto ideológico, sempre determinada pelas relações de poder. Milosz sabia que a razão com frequência é irracional – mas achava que isso não implicava a obliteração de todos os valores. Afinal, como disse alguém, um cínico é uma pessoa que sabe o preço de tudo, e o valor de nada.
A questão central dele é: por que tantos intelectuais precisam de tão escasso encorajamento para aquiescer, se submeter, obsequiosos? Dado que se tratava de uma ortodoxia destinada a aniquilar seu próprio ofício, a se colocar tão brutalmente entre autor e leitor e a ditar não apenas o que poderiam dizer, mas como poderiam dizer – bem, essa capitulação era mais do que um pouco estranha. Publicado há quase 70 anos, A Mente Cativa nunca mais saiu do prelo - felizmente. E nunca perdeu sua atualidade – infelizmente.
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