Hilda Hilst (1930-2004) tem, pela segunda vez, sua obra lírica publicada na íntegra. A primeira edição, a cargo de Alcir Pécora, iniciou-se pouco antes de sua morte. Até então circulara de modo limitado, principalmente nas edições artesanais de Massao Ohno, editor amigo de toda a vida, como se pode conferir no documentário Poesia Presente, de Paola Prestes. Hilst morreu com a vida modesta que levara ao longo de seus últimos anos, em sua chácara – a Casa do Sol – nos arredores de Campinas.
Ao longo dos anos 90, quando publicou sua trilogia obscena, almejava, segundo dizia, ter mais leitores e maior vendagem. Naquela época, era comum vê-la reclamando dos editores. De Ohno, dizia: “O Massao edita os meus livros, mas não os distribui. Tenho uma tese de que ele os coleciona embaixo da cama.” Sobrava até para seu editor póstumo, Luiz Schwarcz, então criticado por preteri-la: “Quando ele montou a própria editora, eu mandei os meus livros e ele não quis publicar nenhum.”
Pois foi na morte que a poesia de Hilst ganhou maior fama, alcance, estudos e edições de grandes tiragens, como desejara. O que afasta os grandes editores dos grandes poetas no Brasil? Se recorrermos a outros casos da mesma geração, veremos que Orides Fontela (1940-1998) e Roberto Piva (1937-2010) viveram situações semelhantes.
Em matéria da Folha de S. Paulo, de 1996, Elvis Bonassa assim descrevia o cotidiano de Fontela, às vésperas do lançamento de seu livro Teia: “Orides Fontela, 55, ganha apenas uma aposentadoria de R$ 423. Mora no prédio da Casa do Estudante, na av. São João, acolhida por uma amiga após deixar, por falta de dinheiro, um apartamento alugado. Orides Fontela é uma das mais respeitadas poetisas brasileiras.” Morta, Fontela teve sua obra reunida, em coedição luxuosa de Cosac Naify e 7Letras, distribuída inclusive pelo MEC para escolas, em 2008; em 2015, a Hedra reeditou seus poemas completos e também lançou sua primeira biografia, O Enigma Orides, de Gustavo de Castro.
No mesmo jornal, em 2005, Julián Fuks assim descreve Piva, que via a publicação de suas obras completas: “Aqueles leitores da década de 1960 (...) talvez se entristecessem ao ver Piva trancafiado em seu apartamento na Santa Cecília, já descrente da vida que pulsa nas ruas. Das ruas, segundo denunciam suas janelas fechadas e empoeiradas, só lhe alcança o som das buzinas.” Sua obra pela editora Globo colocou finalmente seus poemas em circulação e, com isso, sua influência sobre novas gerações de poetas vem crescendo. Desde o ano passado, o bravo editor Gabriel Kolyniak, da Córrego, vem lançando inéditos do poeta, e tocando o projeto da Biblioteca Roberto Piva, no centro de São Paulo.
Os três casos acima parecem confirmar algo dito por Hilst: “O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não pactuar. Para mim, não transigir com o que nos é imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma do coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz ‘Não’”. Tais palavras poderiam servir de enquadramento ao gesto de recusa de Fontela, Hilst e Piva, que levaram a escritura às últimas consequências, confirmando o lugar marginal do poeta moderno, fora de todas as instituições.
Desaparecida do mundo dos vivos, a figura incômoda e desajustada do poeta, já é possível editá-lo. Não fora assim, por que é que não estão ainda em circulação massiva os poemas completos de Renata Pallotini, Antonio de Franceschi e Claudio Willer, para ficar em uns poucos exemplos contemporâneos?
Da Poesia, de Hilda Hilst é, pois, novo capítulo da transformação da obra de Hilst em best seller. O anterior havia sido a publicação, ainda pela editora Globo, de um livro rosa choque, de capa dura, chamado Pornô Chic (2014), que, sob o título e a programação visual que em nada remetiam à incômoda trilogia obscena, buscava oferecê-la na esteira de autoras como Silvia Day.
Muito mais sóbria é a edição de Da Poesia, que marca a estreia de Hilst na editora de Schwarcz. Porém, mesmo nela, vê-se na capa uma foto da poeta, jovem e lânguida, sob filtro vermelho, os grandes olhos fechados, os lábios carnudos em primeiro plano; no miolo, na única outra foto da edição, a poeta na exuberância de seus trinta anos, ao lado da então amiga Lygia Fagundes Telles, igualmente bela, ilustrando as amenas memórias de Lygia sobre Hilda. Nenhuma velhice, nenhuma excentricidade, nenhuma dissonância. O mérito da edição cabe ao dossiê e a alguns poemas inéditos, trazidos em apêndice.
Da Poesia e Pornô Chic mostram ao leitor as embalagens diversas com as quais se pode velar uma obra. Finalmente, em ambos os casos, retirando-se os papéis do embrulho, estão os escritos de Hilst, para o deleite, ainda que tardio, de seus leitores póstumos.
*Wilson Alves-Bezerra é professor do programa de pós-graduação em estudos de literatura da Universidade Federal de São Carlos
Da Poesia Autora: Hilda HilstEditora: Companhia das Letras 584 páginas R$ 64,90
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