Darwinismo carcerário

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Por Renato Janine Ribeiro
Atualização:

A prisão dos condenados pelo mensalão, ou Ação Penal 470, abriu nova perspectiva sobre eles. É difícil imaginar pessoas tão diversas como José Dirceu e José Genoino, dois homens que lutaram contra a ditadura militar, se destacaram na construção do Partido dos Trabalhadores e agora começam a cumprir sentenças severas. Aqui procurarei ver não se eles são culpados ou não, mas como reagem diferentemente à adversidade que fez deles presos – eles, cujo partido continua governando o Brasil e é favorito nas próximas eleições. Um tema importante na filosofia é o dos tempos adversos, o período em que tudo dá errado, a época do infortúnio, como diriam os astrólogos antigos. Agir quando se tem o poder é uma coisa. Agir – ou reagir – na era das dificuldades é outra. Mas não conheço a intimidade de nenhum dos dois, por isso os verei aqui como personagens. Dirceu se constitui como herói. (Esse termo tem sentido técnico, que não é o de “meu herói”; desde a Grécia Antiga, designa quem enfrenta as adversidades com valor. Pode haver heroísmo dos dois lados da batalha. Os astecas só sacrificavam aos deuses os inimigos corajosos. Desprezavam os covardes. O herói se distingue do mártir. Só respeito como mártir quem deu a vida pela causa em que ele – e eu! – acreditamos. Mas posso respeitar como herói o inimigo. Para quem admira Joaquim Barbosa, esse também é herói, o herói da luta contra a corrupção ou contra o PT; mas herói aqui nada tem a ver com quem enfrenta tempos adversos – é só “meu ídolo”, minha celebridade.) Genoino aparece como vítima. Não era necessário. Barbosa produziu esse efeito, prendendo-o, apesar da saúde precária. A Justiça Criminal é uma paixão triste. Não se manda prender com alegria. Mas Barbosa parece gostar de punir; isso é perigoso. Se o poder embriaga, e se o poder é, como dizia o deputado Zezinho Bonifácio, “o poder de nomear e demitir, de soltar e prender”, prender é pior que soltar. Só deve se fazer a contragosto. Pois reduz a Justiça, que deveria ser uma virtude, ao castigo. Milênios foram gastos na passagem da vingança à Justiça. É uma conversão sempre inacabada. A vingança está em nosso ser, precisamos contê-la sempre. Agora, o País está dividido entre ela e a Justiça. Entre os que aprovam a condenação dos réus, há justos. O problema são os vingadores, que correm o risco de ser desumanos. A prisão significa coisas diferentes para Dirceu e Genoino. Ambos estiveram presos na ditadura, contra a qual bravamente lutaram, e veem a atual sentença como uma repetição da primeira. Mas Dirceu tem a pele curtida. Genoino, depois de lutar no Araguaia, se converteu à democracia parlamentar. Acreditou firmemente num preceito da teoria democrática, que é: os conflitos são legítimos na política, mas a democracia converte o inimigo em adversário, elimina o elemento de guerra, não admite a destruição do oponente. Fez amizade com adversários. Deve ser duro ver que adversários com quem dialogava, como FHC, se tornaram inimigos, querem seu encarceramento. É como se anos de empenho numa política democrática - da qual, entre 1985 e 2002, foi uma das estrelas - resultassem em nada. É mais que a ruína de um projeto pessoal, ou a condenação, por corrupção, de um homem pobre. Deve ser devastador. Pior, é emblemático do clima de ódio que tomou conta de nossa política. Porque, se a política for guerra, de que adiantará termos hoje dois, talvez três, partidos melhores que nossa média histórica? Se PT, PSDB e a Rede se matarem entre si, de que valerá a qualidade interna de cada um deles? Dirceu não deve acreditar muito que a democracia reduza a temperatura dos conflitos, que substitua (como eu creio) inimigos por adversários. Por isso, resiste melhor. Para ele, a segunda prisão não é uma humilhação. É continuação da primeira. Assim, pode ter planos afirmativos - escrever um livro, fazer mestrado, brincar com a filhinha, ajudar Genoino preso. Poderá sair da cadeia como exemplo de superação. Contra as adversidades, luta. Genoino tem agora um projeto de negação: não morrer. Está reduzido ao que Agamben chamava de "a vida nua", puro corpo que tenta sobreviver. Veja-se como foram votar em 2012. Genoino foi vaiado na seção eleitoral, voltou para casa, finalmente votou, a alto custo pessoal. Dirceu chegou às urnas com dezenas de militantes; ninguém se atreveu a lhe dizer gracinhas. Tem o estofo do Executivo. Genoino parece dar-se melhor no clima de reconhecimento recíproco que está na essência da democracia, da civilidade, do Parlamento. Dirceu é do poder. Perder faz parte, não acaba com o jogo. Genoino é da limitação ao poder. O balanço é triste, não só porque toda condenação e toda punição é triste, mas porque perdeu quem apostou no reconhecimento do outro, do diferente, do divergente. Não é a questão de Genoino ser inocente ou não. O que esteve em questão esses dias foi sua sobrevivência física - e muitos pediram que morresse. Quem pede isso não só rompe com a democracia e os direitos humanos, como sai da humanidade. Nesse campo mais conflituoso, a postura de Dirceu funciona melhor do que a de Genoino. O custo disso para nossa convivência política será alto. *Renato Janine Ribeiro, Professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, é autor de A Sociedade Contra o Social-O Alto Culta da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras)

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