Quando Jennifer Croft fala sobre a tradução do romance Flights, da romancista polonesa Olga Tokarczuk, ela às vezes se refere carinhosamente ao livro como “filho do nosso amor”.“É da Olga, mas também tem todos esses elementos que são meus, elementos estilísticos e decisões que tomei”, disse ela em entrevista recente.
Flights foi um trabalho de amor para Croft, que passou uma década tentando encontrar uma editora para ele. O livro finalmente foi lançado pela Fitzcarraldo Editions na Grã-Bretanha em 2017 e pela Riverhead nos Estados Unidos em 2018. E foi celebrado como obra-prima. O romance ganhou o International Booker Prize e chegou a ser finalista do National Book Award de literatura traduzida, ajudando Tokarczuk, que tempos depois recebeu o Prêmio Nobel, a conquistar um público global muito maior.
Mas Croft também sentiu uma pontada de decepção porque, depois de passar anos se dedicando ao projeto, seu nome não estava na capa do livro. No verão passado, ela decidiu fazer uma exigência ousada: “Não vou mais traduzir livros sem meu nome na capa”, ela escreveu no Twitter. “Não é só desrespeitoso comigo, é também um desserviço para os leitores, que deveriam saber quem escolheu as palavras que vão ler”.
Sua declaração ganhou amplo apoio no mundo literário. Croft publicou uma carta aberta com o romancista Mark Haddon, pedindo aos editores que creditassem os tradutores nas capas. A carta atraiu quase 2.600 assinaturas, entre elas a de escritores como Lauren Groff, Katie Kitamura, Philip Pullman, Sigrid Nunez e Neil Gaiman, além de tradutores proeminentes, como Robin Myers, Martin Aitken, Jen Calleja, Margaret Jull Costa e John Keene. Sua campanha levou algumas editoras, entre elas a Pan Macmillan da Grã-Bretanha e a independente Lolli Editions, a começar a pôr o nome de todos os tradutores nas capas dos livros.
A última tradução publicada de Croft é The Books of Jacob, de Tokarczuk, um romance histórico de mais de novecentas páginas sobre um líder de culto do Leste Europeu do século 18 chamado Jacob Frank, cuja história se desenrola por entradas de diário, poemas, cartas e profecias.
Os críticos elogiaram a releitura ágil de Croft do épico de Tokarczuk, caracterizando sua tradução como “exuberante” e “maravilhosa”. Em resenha no New York Times, Dwight Garner escreveu que “a tradução sensível de Croft está em sintonia com os muitos registros da autora; ela até faz os trocadilhos funcionarem bem”.
Desta vez, o nome de Croft aparece na capa. A Riverhead o adicionou depois que ela e Tokarczuk solicitaram. Croft também está recebendo royalties por The Books of Jacob, algo que ela não recebeu por Flights. (Os tradutores, que normalmente recebem um pagamento fixo e único por tradução, não ganham uma parte dos royalties na maioria das editoras).Tokarczuk apoiou essas medidas com entusiasmo.
“Ela é incrivelmente talentosa em termos linguísticos”, disse Tokarczuk por e-mail. “Jenny não se concentra na linguagem, mas no que está por baixo da linguagem e no que a linguagem está tentando expressar. Assim, ela explica a intenção do autor, não fica só enfileirando palavras uma depois da outra. Ela também tem muita empatia, capacidade de adentrar toda a dicção do escritor”.
Para Croft, a campanha para dar maior reconhecimento aos tradutores não é apenas um pedido de atenção e crédito, embora também seja isto. Croft acredita que destacar os nomes dos tradutores trará mais transparência ao processo e ajudará os leitores a avaliarem seu trabalho, da mesma forma que avaliam a narração de um audiolivro não apenas pelo conteúdo, mas pela atuação.
A tradução não é apenas uma habilidade técnica, mas um ato criativo, ela argumenta. “Devemos receber crédito, mas também temos de assumir a responsabilidade pelo trabalho que fizemos”, disse ela.
A campanha de Croft repercutiu com outros profissionais no campo. A escritora Jhumpa Lahiri, que também traduz italiano e traduziu suas próprias obras do italiano para o inglês, disse que colocar os nomes dos tradutores na capa dos livros tem de ser uma prática padrão e que os tradutores devem ser tratados como artistas.
“Está na hora de abordar essa omissão histórica”, disse Lahiri, que assinou a carta aberta. “Tradução requer criatividade, requer engenhosidade, requer imaginação. Muitas vezes, você precisa retrabalhar radicalmente o texto – e se isto não é obra da imaginação, não sei o que é”.
Esse trabalho geralmente envolve muito mais do que passar expressões e estruturas sintáticas de uma língua para outra. Os tradutores também acabam sendo olheiros, agentes e divulgadores literários. Muitos ficam lendo obras dos idiomas em que são fluentes para encontrar novos autores e livros e depois apresentá-los às editoras. Quando as versões em inglês são lançadas, os tradutores muitas vezes são chamados para ajudar nas entrevistas e acompanhar os autores em tours de lançamento e gerenciar suas contas de redes sociais em inglês.
A literatura traduzida representa apenas uma fração dos títulos publicados nos Estados Unidos. Apesar do sucesso de livros de estrelas internacionais como Elena Ferrante, Haruki Murakami e Karl Ove Knausgård, muitas editoras ainda se preocupam com o fato de os leitores norte-americanos se sentirem desencorajados pelas traduções.
Ann Goldstein, que traduz Ferrante e outros escritores italianos, disse que faz tempo que as editoras americanas partem do pressuposto de que os leitores desconfiam das traduções e, como resultado, muitas vezes minimizam o papel dos tradutores, às vezes deixando seus nomes totalmente fora dos livros.
“O que as pessoas sempre diziam era que os americanos não compravam um livro se soubessem que era traduzido”, disse ela.
Essa crença se tornou uma espécie de profecia autorrealizável. Desde 2010, foram publicadas menos de 9 mil traduções de ficção e poesia para o inglês e, em 2021, apenas 413 traduções, de acordo com um banco de dados de traduções em inglês compilado por Chad W. Post, editor da Open Letter Books, e disponível no site da Publishers Weekly. As editoras americanas lançaram um total de 586.060 títulos de ficção adulta em 2021, mostram os números do NPD BookScan.
Um número ainda menor de títulos traz o nome dos tradutores na capa: menos da metade das traduções em inglês lançadas em 2021, informou a Publishers Weekly no outono passado.
Um argumento dos editores contra o destaque aos tradutores é que alguns leitores talvez fiquem menos propensos a se arriscar com um livro que seja empacotado como tradução. “Existe a possibilidade de os livros venderem melhor quando apresentados apenas como bons livros, e não como ‘livros traduzidos’”, disse Post por e-mail.
A maioria das grandes editoras diz que não tem políticas formais sobre colocar o nome dos tradutores na capa. Algumas editoras pequenas que se concentram em literatura internacional já o fazem sem grande estardalhaço, entre elas a Archipelago e a Two Lines Press, que se dedicam exclusivamente à literatura traduzida. Em 2020, a editora independente Catapult adotou como política incluir o nome dos tradutores na capa, e a editora paga aos seus tradutores royalties sobre todas as cópias vendidas.
“Vemos isso como uma maneira simples e altamente visível de reconhecer que o trabalho feito pelos tradutores literários é imaginativo e totalmente essencial para o empreendimento de publicar os melhores textos de todo o mundo”, disse Kendall Storey, editor sênior da Catapult, por e-mail.
Croft, 40 anos, que traduz regularmente espanhol e polonês e também trabalhou em livros escritos em russo e ucraniano, diz que começou a traduzir por acidente. Nascida em uma família monolíngue de Oklahoma, ela manifestou uma afinidade precoce com os idiomas e criou uma linguagem secreta com sua irmã mais nova.
Na Universidade de Tulsa, estudou com o poeta Yevgeny Yevtushenko, que a apresentou à literatura russa. Tempos depois, ela fez mestrado em tradução literária na Universidade de Iowa, onde desenvolveu um interesse pela literatura polonesa.
Em 2002, leu uma coleção de histórias de Tokarczuk intitulada Playing on Many Drums. Embora seu polonês ainda fosse rudimentar, ela achou a prosa emocionante e procurou mais textos de Tokarczuk. Encontrou duas traduções em inglês de seus romances por Antonia Lloyd-Jones e enviou um e-mail para a tradutora, que apresentou Croft a Tokarczuk. Elas se deram bem logo de cara.
Depois de se formar em 2003, Croft se mudou para a Polônia com uma bolsa Fulbright, depois se sustentou com bolsas e subsídios enquanto traduzia Flights e outros projetos. Ela morou em Berlim e Paris por um tempo, depois se mudou para Buenos Aires, onde começou a aperfeiçoar seu espanhol, idioma que aprendeu aos 20 anos. Durante todo o tempo, ela foi uma defensora da obra de Tokarczuk.
“Sempre que levava os livros dela para os editores, eu sempre dizia: essa autora ainda vai ganhar o Prêmio Nobel”, disse. “Eu tentava de tudo para disseminar a obra dela, mas nada disso parecia convincente para os editores”.
Além de traduzir os textos de Tokarczuk, ela começou a trabalhar em livros da escritora polonesa Wioletta Greg e dos argentinos Romina Paula, Pedro Mairal e Federico Falco, que descreveram Croft como alguém “extremamente sensível às variações mais sutis na fala das diferentes personagens, aos seus sentimentos, seus humores, seus silêncios”.
Croft tem uma abordagem um tanto inconvencional para a tradução. Ela começa lendo o livro até o fim, depois volta ao início e tenta ao máximo replicar o processo de escrita do autor.
Quando estava trabalhando no romance de Mairal The Woman From Uruguay, que é estruturado como uma carta do marido para a esposa e que Mairal escreveu rapidamente, Croft o traduziu o mais rápido que pôde, para replicar seu ritmo frenético e sua prosa febril e confessional.
“Ela conseguiu manter o tom íntimo”, Mairal escreveu por e-mail. “A tradução soa como se alguém estivesse falando com você, que é exatamente o que eu queria fazer”. Croft se concentra em transmitir tom, estilo e significado mais do que a precisão palavra a palavra. Ela descreveu seu processo como “desmontar completamente um livro e depois reconstruí-lo do zero”.
Quando não está traduzindo, Croft escreve. Ela escreveu um romance autobiográfico em espanhol, intitulado Serpientes y Escaleras, sobre seu amadurecimento e amor pelas complexidades da linguagem e da tradução. De início, ela não planejava lançá-lo em inglês, mas começou a traduzir capítulos para compartilhá-los com sua irmã, cuja condição de saúde é um tema recorrente no livro. Ao reformulá-lo, Croft se viu reescrevendo-o por inteiro como não-ficção, e a versão em inglês, Homesick, que a Unnamed Press lançou em 2019, foi publicada como um livro de memórias.
Croft, que mora entre Los Angeles e Tulsa, Oklahoma, está trabalhando em um romance sobre tradução, intitulado Amadou. A história se passa nas florestas da Polônia, onde um grupo de tradutores se reuniu para trabalhar juntos na mais recente obra de uma célebre romancista polonesa. Os tradutores ficam surpresos quando a autora sofre uma transformação sobrenatural e desaparece na floresta, deixando-os sozinhos para decifrar o significado de seu novo romance.
Croft também tem várias novas traduções saindo nos próximos anos, incluindo três romances traduzidos do espanhol e um do polonês. Embora tenha muitos projetos, Croft às vezes se pergunta se sua campanha para creditar tradutores nas capas não custará algumas oportunidades.“Tenho certeza de que vários editores não vão querer trabalhar comigo”, disse ela. “Algumas pessoas não ficaram nada felizes com a ideia, e eu tive algumas conversas difíceis com editores”.
Ainda assim, o debate que sua iniciativa desencadeou foi gratificante, ela disse: “Pelo menos as pessoas estão prestando um pouco mais de atenção à linguagem em si, aos idiomas e ao trabalho de tradução”.
Este artigo apareceu originalmente em books/literary-translation-
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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