Carolina Maria de Jesus já faz parte do nosso cânone literário. Em dois volumes, Casa de Alvenaria acaba de ser publicado por uma das maiores editoras do país, a Companhia da Letras; a escritora é lida e estudada nos colégios e nas universidades. Agora, se torna monumento público e ganha uma exposição, Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, aberta hoje.
Pode-se dizer que a indústria cultural a elegeu e transformou num de seus produtos mais visíveis e vendáveis no momento. Aqui vem à tona uma discussão bastante importante sobre um aspecto da sua obra, a ortográfica. Sabe-se que, quando a ortografia não é atualizada, ela acaba mantendo o “exotismo”, que é um dos combustíveis mais úteis à indústria cultural. Contudo, no caso dos textos de Carolina, a questão é bastante complexa, pois o “pretuguês” (a influência das línguas africanas na língua portuguesa) estaria presente na fala e nos textos da escritora. Se na primeira publicação de Quarto de Despejo, a ortografia de Carolina foi parcialmente atualizada, nos dois volumes de Casa de Alvenaria, lançados recentemente, o conselho editorial, formado por mulheres negras, optou por não o fazer. É uma escolha, como qualquer outra, mas talvez o leitor merecesse uma explicação mais alentada sobre ela, que desse detalhes, por exemplo, das marcas do “pretuguês” no texto de Carolina. Lembro, todavia, que nem tudo que se escreve fora das normas da língua é “pretuguês”. Não haveria momentos em que a sua escrita apenas se desvia da norma-padrão da língua sem que Carolina tivesse consciência disso? Uma interpretação equivocada e rápida do “pretuguês” acaba, a meu ver, apenas legitimando a incompetência linguística de pessoas que não são sequer artistas. Carolina leva para as páginas de seu livro as marcas de uma linguagem oral; isso é interessante e, acredito, não deveria ser modificado: há palavras nas quais ela troca o “e” pelo “i”, como a gente fala, ou dois esses pela letra cê. Porém, há marcas que não acrescentam nada à discussão da sua linguagem e não dignificam seu texto. Alguns acentos, por exemplo, em palavras como “doutôr”, não parecem uma marca de oralidade. O acento em “doutôr” seria por influência de alguma língua africana na forma escrita? Ao final dos dois volumes de Casa de Alvenaria, lê-se: “Grafia está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.” Quer dizer então que os paratextos, que foram escritos por autoras negras, foram revisados e não adotaram o “pretuguês”? Não há problema nisso, mas seria interessante saber o porquê de os textos das organizadoras terem passado pela revisão ao passo que o de Carolina Maria de Jesus não. Um texto mais encorpado sobre essas questões nas edições de Casa de Alvenaria esclareceria muitos questionamentos do leitor. Vale lembrar que o livro não é apenas para um nicho de leitores, ou não deveria ser. Além disso, esses debates são importantes e mostram o quanto a Carolina é lida por diferentes leitores e o quanto ela, como grande escritora, ainda intriga a crítica. A professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, levantou uma bela discussão sobre a atualização da ortografia de Carolina Maria de Jesus nas redes sociais, mas logo tentaram silenciá-la sob o argumento de que Dalcastagnè não tinha o “lugar de fala”. Se não se pode falar sobre uma obra, se não se pode discuti-la, por que então ela deveria ser lida? Tem-se alegado que a discussão sobre a ortografia de Carolina só teria vindo à tona porque ela seria uma escritora “excluída”. Mas, hoje, isso não é mais verdade. Tem-se, também, e apropriadamente, comparado Carolina a Guimarães Rosa, pois ambos se valem de uma linguagem bastante particular. A diferença entre os escritores estaria, a meu ver, no grau de consciência do uso da língua. Isso não diminui a potência do texto de Carolina. Acredito que seus livros deveriam ser lidos e relidos; aliás, se já tivéssemos feito isso, certamente nossa compreensão da situação brasileira atual seria outra. Em 1955, em Quarto de Despejo, Carolina alertava: “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia”. Carolina tinha uma lucidez e uma postura crítica raras. No que diz respeito ao tema, diria que a sua obra talvez pudesse ser comparada a Vidas Secas, de Graciliano Ramos; afinal, a prosa de Carolina Maria de Jesus parte da escrevivência, para usar um termo de Conceição Evaristo, que afirma: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa-grande’, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. Basta um primeiro contato com a escrita de Carolina para saber que se está diante de uma grande escritora, que tem o que dizer, tem um mundo a nos apresentar e uma forma própria de narrar aquele mundo. Em Quarto de Despejo, lê-se: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando”. Sua obra é feita também de pequenos poemas como esse. Carolina tinha muita consciência de que era uma escritora e uma contadora de histórias: “Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece (m) os argumentos”. Além disso, tinha também um repertório literário: “Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem”. Há muito que se discutir sobre a obra de Carolina, e os seus leitores querem participar da discussão; isso não significa trazer uma verdade ou determinar uma única forma de se aproximar de sua obra, mas abri-la para novas possibilidades, para novas conjecturas que são essenciais para mantê-la viva. A imagem de Carolina como momento em espaço público é fantástica, mas sua obra não pode se manter estática diante dos nossos olhos. AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘CEM ENCONTROS ILUSTRADOS’ E ‘ASCENSÃO: CONTOS DRAMÁTICOS’.
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