Na qualidade de sócio fundador e diretor do Instituto Volpi, formulo aqui singelo convite: comparar os afrescos realizados por Volpi na Capela Nossa Senhora de Fátima, em Brasília, e algumas de suas cobiçadas telas dos anos 1950 e 1960. Note-se que nas paredes da Capela de Niemeyer já estão presentes elementos de fachadas, arcos, bandeirinhas e madonas, na mesma linguagem volpiana de telas que, hoje, são disputadas a tapa por coleções públicas e privadas.
Meu pai deu-me a oportunidade de convívio com gênios. Tive a honra de conhecer Alfredo Volpi, Theon Spanudis, Bruno Giorgi e o próprio Oscar Niemeyer. Sou, pois, consciente do privilégio que tive, por presenciar almoços, reflexões sobre projetos, pinturas etc. Hoje, vejo a sorte que tive! Mas, ao mesmo tempo, sinto-me endividado e dou testemunho do pensamento que os movia.
A década de 1950 foi período de grande influência recíproca na amizade de Theon Spanudis e Alfredo Volpi. Nesse período, Spanudis era, sem sombra de dúvida, o maior colecionador e divulgador da obra de Volpi, e assinou o manifesto do neoconcretismo, tornando-se nome-chave do movimento. Época do flerte de Volpi com o abstracionismo geométrico, que resultou na pintura dita “concreta”, cuja doação ao MAC/USP estamos viabilizando através Aamac (Associação de Amigos do Museu de Arte Contemporânea), conforme já noticiou o Estado. Na mesma década, foi erguido o primeiro templo religioso em alvenaria de Brasília.
Trata-se da Igreja Nossa Senhora de Fátima, inaugurada em 28 de junho de 1958, a pedido da então primeira-dama, sra. Sarah Kubitschek, em tão somente 100 dias. Consta que sua pedra fundamental data de 26 de outubro do ano anterior. A empregada velocidade na construção, segundo conversas e relatos que presenciei, estaria ligada a uma promessa feita pela esposa do então presidente de República, em virtude da saúde da filha.
Tal capela era projeto de Niemeyer, que dizia ter se inspirado nos chapéus utilizados por algumas freiras. Athos Bulcão realizou painéis de azulejos, Burle Marx fez o projeto paisagístico. Além disso, havia, em seu interior, lindos afrescos de Alfredo Volpi. Nossa Senhora, rodeada por bandeirinhas, flutuando no céu. Já na parede ao lado, outro grande afresco de Volpi contendo elementos de fachadas, arcos e bandeiras ao sabor do vento.
Há divergência de versões. Seja por considerar as bandeirinhas “profanas”; pela falta de pés na figura de Nossa Senhora; ou ainda por entender que, na devoção mariana de Nossa Senhora de Fátima, a Virgem não carregaria o Menino Jesus no colo; certo padre, anos depois, incomodado, mandou simplesmente raspar os afrescos e pintou as paredes de branco. Há apenas alguns poucos registros fotográficos de tais no catálogo raisonné do artista.
Reflexões: quando Volpi executou os afrescos na capela de Niemeyer, não havia real garantia de acesso e desfrute de obras modernistas? Arquitetura e pintura integradas? Verdadeira fruição cultural, no seio da práxis religiosa popular? Arte, fé, cultura em harmonia? E de visitação gratuita?
No ano de 2013, o Estado noticiou denúncia feita pelo Instituto Volpi sobre os danos sofridos agora no afresco O Sonho de Dom Bosco. À época, o Instituto Volpi cobrou resposta do Itamaraty e também enviou ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) uma carta solicitando licença para consultar especialistas na esperança de salvar o referido afresco, bastante comprometido. Como se sabe, o acervo do Itamaraty é tombado, assim como o prédio que abriga o afresco dedicado ao patrono de Brasília, o que valeu críticas ao descuido com o patrimônio artístico ao mesmo Governo que baixara um decreto que permitiria monitorar coleções privadas do País. Até agora, o afresco de Volpi segue na mesma, sem qualquer restauração, sendo que a troca formal de correspondência com o Ministério das Relações Exteriores, havida já há quatro longos anos, está disponível para consulta no site do Instituto Volpi.
A bem da verdade, cultura não é assunto apenas de um governo, qualquer que seja ele. Não se trata deste ou aquele presidente. Não é demasiado lembrar que nossa Constituição Federal consagra o entendimento de que a cultura é importante elemento de formação de identidade. Nossas músicas, danças, pinturas e esculturas, a maneira pela qual professamos nossa fé. É através das manifestações culturais que nos reconhecemos por iguais. Dando-nos o sentimento de pertencimento.
Li, consternado, a declaração da filha do urbanista Lúcio Costa, em matéria do Estado de 5 de janeiro passado, sobre a devolução das obras dos palácios do Planalto e da Alvorada para o Museu Nacional de Belas Artes do RJ. Maria Elisa classificou a retirada das peças como “uma traição a Juscelino".
Alfredo Volpi e Bruno Giorgi, grandes amigos, tinham profundo orgulho dos trabalhados de Brasília, por entender a cidade como símbolo da importância e integração da arte e da cultura no processo decisório e no destino da nação. O Instituto Volpi não tem medido esforços para cumprir sua missão de zelar pela preservação e divulgação da memória e da obra artística do pintor. Difícil tarefa em um país sem políticas públicas eficazes ou mesmo empenho, vontade política de proteger o patrimônio histórico nacional, que segue ao Deus dará.
Os afrescos da capela de Niemeyer destruídos por fanatismo e ignorância; O Sonho de Dom Bosco, que segue danificado há anos; e, agora, a triste constatação que rara tela da fase concreta de Volpi veio a ser adulterada para escapar de apreensão judicial. Vivemos a época dos monumentos públicos deliberadamente conspurcados. Sinto falta de uma política pública que demonstre eficácia, efetividade na proteção do nossos bens culturais. A proteção ao patrimônio deveria começar pelo próprio Estado, dando o bom exemplo. Afinal, trata-se da nossa identidade. Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e JK, de há muito, já sabiam disso.
*Pedro Mastrobuono é sócio fundador e diretor do Instituto Volpi
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