Poucas figuras no mundo despertam tanta controvérsia quanto Karl Marx (1818-1883). Identificado como o grande profeta do comunismo, o filósofo alemão é, por isso mesmo, adorado como um santo pela esquerda e odiado como um demônio pela direita. Mesmo que poucos tenham efetivamente lido o que ele escreveu, e que muitos dos que se dizem seus seguidores limitem-se a recitar as passagens populares de seus textos mais conhecidos – como a abertura do Manifesto do Partido Comunista (“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”), ou como a igualmente notória abertura do 18 Brumário de Luís Bonaparte (“Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”) –, o fato é que parece que o mundo inteiro tem algo a dizer sobre Marx. Mas qual Marx?
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Duas alentadas biografias lançadas no Brasil se propõem a reconduzir Marx à sua dimensão humana, como produto de seu tempo, destituído dos inúmeros epítetos pelos quais ele passou à história e aos quais, é o que esses livros demonstram, ele quase nunca fez jus, para o bem ou para o mal.
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Não é uma tarefa trivial. Os guardiões dos textos sagrados de Marx, conhecidos como marxistas, quase nunca se dispõem a falar em público sobre os erros e as contradições de seu herói. Afinal, a fama de um filósofo que “provou” o iminente colapso do capitalismo não pode ser ameaçada por questões mundanas, como sugere o historiador britânico Gareth Stedman Jones em seu livro Karl Marx: Grandeza e Ilusão (Companhia das Letras), lançado em dezembro.
Nem mesmo o colapso do comunismo, lá se vão três décadas, e o renovado vigor do capitalismo, a despeito de suas recorrentes crises, são capazes de diminuir a aura em torno de Marx. Mas Stedman Jones, assim como o historiador americano Jonathan Sperber, autor de Karl Marx: Uma Vida do Século 19 (Amarylis), de 2014, trataram de reconstituir a vida e as ideias de Marx não à luz das reações extremadas que causam ainda hoje, e sim em relação ao turbulento contexto de sua época.
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O pensamento de Marx que surge de ambos os trabalhos é algo diferente do que ficou consagrado como “marxismo”, isto é, a interpretação de suas ideias feita por seus seguidores, tanto os contemporâneos quanto os posteriores. Trata-se de um homem que viveu intensamente uma era de revoluções, cujo leitmotiv era a destruição dos pilares da velha ordem aristocrática. Ele é filho direto da Revolução Francesa e do pensamento dialético de Hegel, além de contemporâneo da industrialização inglesa, que mudou a face econômica, social e política do mundo.
Enquanto o britânico Stedman Jones concentra sua atenção no pensamento de Marx, detalhando as influências que o filósofo sofreu, não apenas dos pensadores de sua época, mas dos amigos e inimigos que cultivou, o americano Sperber descreve com mais detalhes a vida pessoal, embora não deixe de fazer também uma minuciosa radiografia de seus escritos e de suas teorias – reservando, em vários casos, fortes críticas às inúmeras contradições do personagem.
Assim, vários mitos criados pelos hagiógrafos de Marx ficam devidamente desmoralizados nos dois livros. Marx não criou o comunismo, e muito do que se lhe atribui nesse particular havia sido elaborado por outros pensadores, como Proudhon, que já falava de “abolição da propriedade privada”, entre outras concepções hoje chamadas de “marxistas”. Curiosamente, Marx vivia a atacar Proudhon. Também curiosamente, como lembra Sperber, Marx, em 1842, apenas seis anos antes de publicar o Manifesto do Partido Comunista, defendeu no jornal A Gazeta Renana que os comunistas fossem reprimidos violentamente – pelas armas, se necessário. Mais ainda: já em 1848, seis meses depois de ter publicado o Manifesto, Marx classificaria de “nonsense” a ideia de uma ditadura do proletariado. Ele voltaria a usar o termo “nonsense” 23 anos depois, para qualificar a Comuna de Paris. Como se observa, Marx, em seu ativismo feroz, não se importava em ser contraditório.
Mesmo a concepção de Marx sobre o capitalismo, consubstanciada em O Capital e tida por seus seguidores como a prova de sua genialidade, recebe de Stedman Jones e de Sperber consistentes reparos. Sperber procura demonstrar que o capitalismo ao qual Marx se refere é o do século 19, muito diferente do atual, razão pela qual não se pode tentar aplicar suas teorias fora de época, ao menos sem levar em conta o risco do anacronismo. Stedman, por sua vez, considera que Marx se equivocou ao elaborar sua teoria do valor, central em seu pensamento sobre o capitalismo.
Grosso modo, segundo Marx, o preço de um produto é determinado pela quantidade de trabalho gasto para fazê-lo, e isso explicita a exploração dos trabalhadores, que não ficam com a riqueza equivalente ao que produziram – essa riqueza é tomada pelo capitalista, restando ao trabalhador apenas o suficiente para se manter vivo e se reproduzir. Para Marx, portanto, somente o trabalho define o valor do produto – chamado de “trabalho objetificado”. Stedman Jones, porém, nota que Marx arbitrariamente descartou fatores como a demanda e a utilidade na formação dos preços dos produtos. Trata-se de uma obviedade, que apenas os marxistas mais fanáticos se negam a observar, mas quem quer que estude O Capital honestamente sabe que ali há um bocado de absurdos como esse. Assim, é lícito questionar o que resta de Marx se aquilo que o torna tão importante é, ao menos em parte, uma coleção de equívocos.
Pode-se dizer, como faz Stedman Jones, que a relevância de Marx está no fato de que ele foi um dos mais ativos e eloquentes denunciantes da desumana situação dos trabalhadores europeus do século 19, momento em que as massas de operários e a produção de mercadorias em larga escala mudaram o mundo. Confuso, uma vez que tentou conciliar a dura tarefa de teorizar as contradições do capitalismo com a necessidade de ganhar algum dinheiro para sobreviver e alimentar a família, além de se envolver em inúmeros compromissos políticos, Marx refletiu os choques e as expectativas de uma época de transformações profundas.
Crítico contumaz do positivismo, era ele mesmo, inadvertidamente, um positivista, ao acreditar na sucessão da história em etapas, da irracional e selvagem para a harmônica e científica, fase que marcaria o colapso do capitalismo e o consequente fim da história. Levado ao extremo pelo leninismo, esse pensamento – transformado em método pretensamente científico, com uma suposta revelação das leis do desenvolvimento humano – resultou em diversos regimes totalitários, a começar pelo da ex-União Soviética, que ruiu em apenas sete décadas, por sua profunda negação dos fundamentos da economia.
Já o capitalismo, como Marx previu, teve a capacidade de desmanchar no ar tudo o que parecia sólido, fazendo seu poder revolucionário avançar muito além das relações estritamente econômicas. Assim, embora seja identificado como teórico do comunismo, Marx soube, como poucos em sua época, revelar ao mundo a anárquica vocação do capitalismo para se reinventar.
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