A coragem de uma pequena editora paulistana de publicar dois textos teatrais do dramaturgo norte-americano Edward Albee (1928-2016), considerando as atuais dificuldades enfrentadas pelo mercado editorial, deve ser destacada como um exemplo a seguir. A Grua, que lançou obras de Nikos Kazantzakis, Joseph Conrad e Gógol, coloca no mercado de uma só vez as peças Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e Três Mulheres Altas, duas entre as melhores produzidas pelo premiado autor (Pulitzer em três ocasiões).
Todas as peças de Albee trazem personagens desiludidos e deslocados – alguns hostilizados ao extremo, o que traduz a falta de confiança nas instituições, em especial na família. Filho adotivo, Albee fez de seus textos plataformas contra a hipocrisia e os preconceitos de sua classe social. Criado numa família de empresários do teatro de vaudeville, ele cedo abandonou o lar, como o faz o filho de Três Mulheres Altas. Albee, na época da estreia da peça (1991, em Viena), revelou que o texto era uma espécie de exorcismo, uma tentativa de expurgar antigos demônios que o perseguiam desde a juventude.
Homossexual, ele tenta entender o comportamento da mãe arrogante, cuja prepotência tem como alvo preferencial o filho adotivo, ao adotar como protagonista de Três Mulheres Altas uma senhora de 92 anos que, no crepúsculo de sua existência, reflete, um pouco envergonhada, sobre sua tirania e a conturbada relação com o filho – ausente, ele só se manifesta em breve passagem pelo palco, quase um espectro, uma projeção de Albee.
Entre as grandes atrizes que interpretaram a mãe estão Maggie Smith e Glenda Jackson. Talvez não seja necessário ir além para mostrar a importância de Albee no cenário teatral do século 20. As outras duas “mulheres altas” da peça são, de fato, uma só, desdobramentos de uma mesma personalidade em três fases distintas da vida. Além da senhora A, se encontram no palco a senhora B, sua cuidadora, na faixa dos 50 anos, e a jovem B, de 20 e poucos, uma advogada que defende seus interesses.
Quem domina a cena é a senhora A, que rememora o passado da maneira possível a uma mulher que já cruzou o portal da senilidade. O primeiro ato é um desabafo contra a falta de perspectiva e o desaparecimento das pessoas com as quais conviveu. Seu mundo está próximo do fim e, antes que o segundo ato comece, ela é vítima de um derrame. No segundo ato, a senhora A é substituída por um manequim. As outras duas mulheres não são mais entidades autônomas, mas seres replicantes da senhora A em diferentes épocas. É nesse segundo ato que aparece e o filho pródigo. Sentado ao lado do leito materno, ele personifica o autor Albee, apaziguado com o vulto que atormentou seus dias e agora não é mais que um espectro shakesperiano. Seu último suspiro pode significar o sopro de vida que falta ao filho.
Há quem veja nessa relação uma confissão – admitida timidamente – da misoginia de Albee. Muitas das mulheres nas 13 peças escritas por ele sentem inveja do poder masculino e tentam realizar o anseio de dominação, manipulando ou se vingando dos maridos, caso da Martha em Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Albee percebeu que Frances Albee, casada com o poderoso Reed, seu pai adotivo, não era diferente desse estereótipo. Amava a mãe adotiva com a mesma força com que a detestava. As mulheres, em outras peças de Albee, não recebem melhor tratamento. Em Tiny Alice (1964), ela é uma mulher corrupta. Em The Play About the Baby (2001), a mãe ressentida deve aceitar o filho gay, mas luta contra a ideia.
Em Três Mulheres Altas, a senhora que relembra o passado enfrenta dilema semelhante, acrescido de uma dose insuportável de racismo e antissemitismo. Seu casamento foi uma farsa. O marido a traía e usava recursos sórdidos para humilhar a esposa – um dos episódios que ela conta faz referência a um ato de sexo oral em troca de um bracelete de diamantes (Albee via o casamento como prostituição).
Essa visão pessimista, que foi definida pelos estudiosos de sua obra como uma herança do teatro de Beckett, tem também algo a ver com Strindberg, embora a linguagem de Albee seja deliberadamente vulgar para acentuar a crueldade de seus personagens – Quem Tem Medo de Virginia Woolf? reduz o discurso retórico a cacos com a troca de palavrões agressivos entre Martha e George, o casal neurótico da peça. Três Mulheres Altas é um psicodrama em que a mãe espelha o filho, como nas antigas tragédias gregas. Albee admitiu que queria escrever uma peça “de vingança”. Abominava os preconceitos da mãe, sua paranoia, mas admirava seu orgulho. Ao vê-la debilitada física e mentalmente aos 90 anos, ficou tocado, fascinado por esse declínio.
Já a origem de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? é um pouco mais nebulosa, embora a figura do filho – ainda que fictício, como revela o epílogo – autorize o leitor a identificar o modelo ao qual Albee se refere. Martha, de 52 anos, filha do reitor de uma universidade da Nova Inglaterra, EUA, é casada com George, 46, professor da instituição. Ao voltar de uma festa na casa do pai de Martha, o casal recebe a visita de um professor de Biologia, Nick, e de sua esposa Honey, bem mais novos. O quarteto bebe demais. Martha tentará seduzir o jovem professor bonitão, que falha miseravelmente.
Numa época em que as famílias eram idealizadas na mídia, o teatro de Albee desmonta as estruturas que sustentam sua base. Martha e George se odeiam, sucumbindo ao jogo de gato e rato que anos de convivência e dependência emocional promovem. George diz a Nick que é difícil ser casado com a filha do reitor, mas não é cruel apenas com a esposa. Humilha também o professor, que, em seu surto paranoico, disputa com ele um alto posto na hierarquia universitária. Estando Martha impossibilitada de substituir o pai reitor em suas funções, ela deposita em George a esperança de que ele cumpra esse papel, mas duvida de sua capacidade.
No segundo ato, apropriadamente chamado de Walpurgisnacht, as bruxas estão soltas. A força pagã que se opõe ao conservadorismo da família americana, de fachada religiosa, emerge com força avassaladora. É nele que Martha, alcoolizada, tenta seduzir o loiro Nick, que não consegue manter a ereção. Frustrada, ela vocifera contra os homens, desprezando a impotência do macho. Caem as máscaras e a noite. Os casais se reconciliam para brigar no dia seguinte. Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, pergunta George. “Eu”, responde a resignada Martha, admitindo finalmente que também ela, como os homens, sofre de uma insegurança crônica diante da vida.
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