A fenomenologia pretendeu renovar a filosofia através de um método próprio, a "redução fenomenológica", que almejava estudar os objetos como eles se mostram ao observador. Melhor dito: como são vivenciados pela consciência. A "redução fenomenológica" exige que se suspendam valores e pressupostos, a fim de exercitar uma concentração absoluta na experiência com o objeto.
Como seria uma resenha com base no método fenomenológico? Por exemplo, de A Queda. Comecemos por sua descrição.
O livro é composto por 424 anotações e imagens, que fazem às vezes de pequenos capítulos - ou de ensaios relâmpagos. O subtítulo sintetiza a estrutura do texto: "As memórias de um pai em 424 passos".
O livro se compõe das memórias de um pai, cujo filho, devido a erro médico durante o parto, teve como sequela uma paralisia cerebral. A Queda é relato da conversão do autor a um amor incondicional, que o leva a rever seus valores e, sobretudo, seu lugar no mundo - a frase é forte, mas é disso que se trata. Leia-se o "passo" 421:
"Quando vi Tito na incubadora, no dia de seu nascimento, compreendi que o amaria e o acudiria para sempre.
De lá para cá nada mudou.
Eu o amarei sempre. Eu o acudirei para sempre".
O autor já o havia dito no princípio do livro (no "passo" 53). Aliás, a repetição é deliberada e constitui recurso fundamental em A Queda.
Por isso, o número palíndromo, 424, mais do que referência numérica precisa, é a miniatura da forma literária inventada pelo autor. Forma associada à experiência de mundo do filho: "A história de Tito é assim: circular". O leitor encontra a sentença nos "passos" 21, 55, 76, 181 - para terminar, outro número palíndromo, ou seja, a perfeita imagem do eterno retorno na história. Desse modo, o universo de Tito se transforma em inesperado eco de certa interpretação da cultura ocidental. Recorde-se o "passo" 400:
"A Storia Ideal Eterna de Giambattista Vico é assim: circular".
A repetição de frases inteiras ao longo do livro revela o esforço do autor em estabelecer uma analogia com a própria visão do mundo do filho. À circularidade de sua história corresponde a reiteração de um número limitado de conceitos e juízos.
Daí a centralidade da analogia no método compositivo do autor, assim como a relevância do recurso a imagens. Trata-se do mesmo propósito: inventar um estilo literário informado pelo olhar de Tito. É como se o pai se transformasse em tradutor da visão do mundo do filho; então, ler A Queda é uma forma de dialogar com Tito - e em seus próprios termos.
Aliás, no "passo" 237, uma espécie de manual de instruções da narrativa, o autor já o havia esclarecido:
"Tito só se comunicava através de imagens, de gestos, de símbolos, de metáforas, de analogias.
Eu tinha de interpretá-lo. Eu tinha de me adaptar à sua linguagem. Se ele usava imagens, eu também usava imagens. Se ele usava analogias, eu também usava analogias".
O êxito da complexa adaptação é a conquista literária mais importante de A Queda, cuja força depende de uma autocrítica impiedosa. O tema é difícil, porém incontornável. Caso contrário, sua leitura incorrerá no sentimentalismo do qual o autor expressamente deseja fugir (leiam-se os "passos" 154, 206 e 378).
Como se diz no "passo" 3, "o hospital de Veneza, que agora se erguia à nossa frente, era conhecido por seus erros médicos". Contudo, o futuro pai insistiu no local por motivos revelados no "passo" 78:
"Um dos fatores pelos quais eu insistira em que o parto de Tito ocorresse no hospital de Veneza, além da arquitetura de Pietro Lombardo, fora a proximidade com a confeitaria Rosa Salva".
De fato, o bignè allo spumone di zabaione, aí preparado, parece mesmo irresistível - e sua imagem é devidamente reproduzida.
Compreenda-se o ponto: um dos modos da paralisia contemporânea é a onipresença de um solipsismo sem limites, cujas consequências passam despercebidas, pois sempre estamos muito envolvidos com nossa maior prioridade: nós mesmos; a redundância se impõe.
A queda mencionada no título refere-se especialmente aos constantes passos em falso de Tito, cuja espasticidade o leva a cair com frequência. Os 424 passos aludem ao maior percurso realizado por ele sem interrupção.
A queda, contudo, também é a do autor e de sua onipotência.
Ora, em alguma medida, A Queda é o relato de uma expiação.
No fundo, expiação que concerne a cada um de seus leitores. Afinal, ensimesmamento sem interioridade deixou de ser um paradoxo, convertendo-se em hábito cotidiano.
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJA QUEDA - AS MEMÓRIAS DE UM PAI EM 424 PASSOSAutor: Diogo MainardiEditora: Record(152 págs., R$ 29,90)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.