PUBLICIDADE

Em 'A Queda', Diogo Mainardi relata seu amor incondicional pelo filho

Tito, filho do jornalista, foi acometido de paralisia cerebral por erro médico

PUBLICIDADE

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualização:

A fenomenologia pretendeu renovar a filosofia através de um método próprio, a "redução fenomenológica", que almejava estudar os objetos como eles se mostram ao observador. Melhor dito: como são vivenciados pela consciência. A "redução fenomenológica" exige que se suspendam valores e pressupostos, a fim de exercitar uma concentração absoluta na experiência com o objeto.

PUBLICIDADE

Como seria uma resenha com base no método fenomenológico? Por exemplo, de A Queda. Comecemos por sua descrição.

O livro é composto por 424 anotações e imagens, que fazem às vezes de pequenos capítulos - ou de ensaios relâmpagos. O subtítulo sintetiza a estrutura do texto: "As memórias de um pai em 424 passos".

O livro se compõe das memórias de um pai, cujo filho, devido a erro médico durante o parto, teve como sequela uma paralisia cerebral. A Queda é relato da conversão do autor a um amor incondicional, que o leva a rever seus valores e, sobretudo, seu lugar no mundo - a frase é forte, mas é disso que se trata. Leia-se o "passo" 421:

"Quando vi Tito na incubadora, no dia de seu nascimento, compreendi que o amaria e o acudiria para sempre.

De lá para cá nada mudou.

Eu o amarei sempre. Eu o acudirei para sempre".

Publicidade

O autor já o havia dito no princípio do livro (no "passo" 53). Aliás, a repetição é deliberada e constitui recurso fundamental em A Queda.

Por isso, o número palíndromo, 424, mais do que referência numérica precisa, é a miniatura da forma literária inventada pelo autor. Forma associada à experiência de mundo do filho: "A história de Tito é assim: circular". O leitor encontra a sentença nos "passos" 21, 55, 76, 181 - para terminar, outro número palíndromo, ou seja, a perfeita imagem do eterno retorno na história. Desse modo, o universo de Tito se transforma em inesperado eco de certa interpretação da cultura ocidental. Recorde-se o "passo" 400:

"A Storia Ideal Eterna de Giambattista Vico é assim: circular".

A repetição de frases inteiras ao longo do livro revela o esforço do autor em estabelecer uma analogia com a própria visão do mundo do filho. À circularidade de sua história corresponde a reiteração de um número limitado de conceitos e juízos.

Daí a centralidade da analogia no método compositivo do autor, assim como a relevância do recurso a imagens. Trata-se do mesmo propósito: inventar um estilo literário informado pelo olhar de Tito. É como se o pai se transformasse em tradutor da visão do mundo do filho; então, ler A Queda é uma forma de dialogar com Tito - e em seus próprios termos.

Aliás, no "passo" 237, uma espécie de manual de instruções da narrativa, o autor já o havia esclarecido:

"Tito só se comunicava através de imagens, de gestos, de símbolos, de metáforas, de analogias.

Publicidade

Eu tinha de interpretá-lo. Eu tinha de me adaptar à sua linguagem. Se ele usava imagens, eu também usava imagens. Se ele usava analogias, eu também usava analogias".

O êxito da complexa adaptação é a conquista literária mais importante de A Queda, cuja força depende de uma autocrítica impiedosa. O tema é difícil, porém incontornável. Caso contrário, sua leitura incorrerá no sentimentalismo do qual o autor expressamente deseja fugir (leiam-se os "passos" 154, 206 e 378).

Como se diz no "passo" 3, "o hospital de Veneza, que agora se erguia à nossa frente, era conhecido por seus erros médicos". Contudo, o futuro pai insistiu no local por motivos revelados no "passo" 78:

"Um dos fatores pelos quais eu insistira em que o parto de Tito ocorresse no hospital de Veneza, além da arquitetura de Pietro Lombardo, fora a proximidade com a confeitaria Rosa Salva".

De fato, o bignè allo spumone di zabaione, aí preparado, parece mesmo irresistível - e sua imagem é devidamente reproduzida.

Compreenda-se o ponto: um dos modos da paralisia contemporânea é a onipresença de um solipsismo sem limites, cujas consequências passam despercebidas, pois sempre estamos muito envolvidos com nossa maior prioridade: nós mesmos; a redundância se impõe.

A queda mencionada no título refere-se especialmente aos constantes passos em falso de Tito, cuja espasticidade o leva a cair com frequência. Os 424 passos aludem ao maior percurso realizado por ele sem interrupção.

Publicidade

A queda, contudo, também é a do autor e de sua onipotência.

Ora, em alguma medida, A Queda é o relato de uma expiação.

No fundo, expiação que concerne a cada um de seus leitores. Afinal, ensimesmamento sem interioridade deixou de ser um paradoxo, convertendo-se em hábito cotidiano.

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJA QUEDA - AS MEMÓRIAS DE UM PAI EM 424 PASSOSAutor: Diogo MainardiEditora: Record(152 págs., R$ 29,90)

 

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.