Flush, escrito por Virginia Woolf, é a obra mais renegada pela autora e a crítica. Woolf chegou a chamá-lo de livro “tolo”. Já os críticos achavam que Flush era a “decadência” e o “colapso” da escritora. No entanto, o livro que narra a biografia de um cão logo agradou o grande público com sua linguagem fácil e seu tom irônico, chegando a vender 19 mil cópias em seis meses após o lançamento. Hoje, embora nem sempre citado e muitas vezes ignorado pela academia, Flush resiste e ganha agora uma nova edição brasileira pela Penguin.
É possível que o fato de o livro ainda circular e agradar a tantos leitores se deva, principalmente, a ser um projeto ousado. Em Flush encontramos uma mistura de gêneros literários, como a biografia, o romance histórico e a fantasia. Isso porque, ao escrever sobre a vida de Flush, cocker spaniel de Elizabeth Barrett Browning, uma das escritoras mais celebradas da Inglaterra vitoriana, Woolf trouxe uma nova perspectiva do passado por meio de um personagem real e nada conhecido pela historiografia. Por outro lado, fez isso dando acesso aos “pontos de vista” de um cão, penetrando, por fim, no terreno do irreal. A falar sobre a vida do cão Flush, ela descreve indiretamente a vida de Browning, personagem histórica que faz brilhar os olhos de qualquer escritor, pois sua trajetória tem particularidades que parecem ter sido extraídas da ficção. Moradora da Wimpole Street (local de moradia da alta sociedade londrina), Browning já tinha certo reconhecimento por sua literatura quando completou 40 anos de vida. Porém, não era uma pessoa feliz. Desde muito nova, vivia em uma eterna quarentena devido a uma doença no pulmão que a impedia de sair normalmente de casa. Além disso, morava com um pai severo, que a mantinha o tempo inteiro sob seu controle. No entanto, mesmo diante das circunstâncias, ela começa a trocar cartas com o também poeta Robert Browning. Em pouco tempo, se apaixonaram. Foi durante esse período, inclusive, que a futura senhora Browning escreveu os 44 sonetos de amor que mais tarde fariam parte de seu livro Sonetos Portugueses. Sobre o destino dos dois amantes, Manuel Bandeira, que traduziu muitos dos sonetos, chegou a escrever: “Nenhum casal de criaturas humanas foi jamais tão longe, mesmo nos domínios da fábula, como Elizabeth Barrett e Robert Browning”. Talvez por acreditar que muitos conheciam essa história ou tinham fácil acesso a ela, Virginia Woolf optou por apenas pincelar os episódios acima narrados. No livro, o cachorro não é capaz de entender com grande nível de profundidade o que acontece ao seu redor. O próprio relato alerta que “era no mundo dos cheiros que Flush vivia a maior parte do tempo”. Assim, o spaniel não consegue ler as cartas que Elizabeth escreve para Robert, mas paga o “preço dos longos anos de sensibilidade acumulada enquanto permanecia deitado nas almofadas aos pés da senhorita Barrett”, pois se torna capaz de “compreender sinais que ninguém mais podia ver”. Nos primeiros meses de vida, Flush morou com os Mitford. Ele gozava de certa liberdade ao correr pela propriedade do chalé daquela família, mas, mesmo sendo considerado um cão extremamente caro (algo em torno de 20£, que na época poderiam comprar “um guarda-roupa completo”), foi dado de presente para Elizabeth. Com a nova dona, veio a decepção: Flush percebe que seu dia a dia será cheio de privações, uma vez que tem de ficar trancado fazendo companhia para Barrett. “As longas horas transcorriam no quarto dos fundos sem nada para marcá-las exceto o som de passos na escada; e o som distante da porta da frente sendo fechada, e o som de uma vassoura varrendo, e o som do carteiro se anunciando.” Porém, em um dos raros passeios com a dona, Flush percebe que existe diferenças entre os cachorros: “Alguns ficam presos a uma correia, outros vivem soltos. Alguns passeiam em carruagens e bebem água trazida em vasos roxos, outros são sujos, não possuem coleira e vivem do que encontram nas sarjetas. Portanto, Flush começou a suspeitar, os cães são diferentes: uns superiores, outros inferiores”. O cão logo conclui que fazia parte dos superiores. “Observou com aprovação o vaso roxo do qual bebia – tais eram os privilégios de sua posição; curvou a cabeça tranquilamente para que a correia fosse presa à sua coleira – tais eram as penalidades.” Mesmo se percebendo como um ser importante, Flush logo fica totalmente dependente de Elizabeth – e ela, dele. Ambos chegam ao ponto de terem os mesmos pensamentos em muitas situações. Com a riqueza e o lugar que ocupa entre os cachorros, também é notável o quanto Flush depende das regras que a sociedade lhe impõe. Havia, por exemplo, o Spaniel Club, uma entidade que definia quais características deveriam ser dominantes em um spaniel: “Olhos claros, por exemplo, não são desejáveis; orelhas curvadas, piores ainda; nascer com um nariz de cor clara ou um topete pode ser fatal (...) aquele que persiste em perpetuar os topetes e os narizes de cor clara não receberá os privilégios e vantagens de sua raça””. A ironia empregada em tais trechos é ainda mais perceptível quando nos damos conta de que, na década de 1930, quando Woolf escreveu a obra, ocorria o crescimento do fascismo na Grã-Bretanha. Segundo o prólogo do livro redigido por Anna Snaith, na época os judeus eram descritos como “vira-latas” e “engajados numa conspiração para degenerar as raças da humanidade”. Também os estrangeiros eram mal vistos e a população da área mais pobre da cidade, como os moradores de Whitechapel, eram “frequentemente relacionados” a outras raças, de acordo com Snaith. Woolf não conseguia engolir essas ideias – ainda mais sendo casada com um judeu – e viu a oportunidade de empregá-las com sarcasmo em Flush. Isso fica evidente quando o cão é sequestrado em 1846 e é levado justamente para Whitechapel, onde sua dona vai buscá-lo e paga pelo resgate. O roubo de cães era comum no século 19 em Londres. O líder da gangue, Taylor, teria uma renda de duas mil ou três mil libras por ano com cães da Wimpole Street, segundo Snaith. Para Elizabeth Browning, Whitechapel era um mundo com o qual ela nunca tinha contato. “O único comportamento seguro para os que moravam na Wimpole Street e cercanias era se manter estritamente dentro da área de respeitabilidade e levar seu cão preso pela coleira”, explica o narrador de Flush, mostrando o quanto a escritora estava dentro de uma verdadeira bolha social. Assim, foi um choque para ela entrar num bairro “onde as vacas eram abrigadas debaixo dos quartos de dormir” e num mundo em que “vícios e pobreza geram mais vícios e pobreza”. Na vida real, o mesmo deve ter ocorrido com ela, que depois escreveu um poema com descrições da pobreza em Whitechapel. A partir daí, o olhar e atitudes da personagem Browning mudam. Após resgatado, Flush percebe que algo está para ocorrer: “Então a viu tirar o anel do dedo e escondê-lo no escuro de uma gaveta. A seguir, ela se recostou no sofá como sempre. Ele se acomodou a seu lado, mal ousando respirar”. Dessa forma, embora o próprio cão não saiba, é por de seu ponto de vista que sabemos que Elizabeth se casou em segredo e virou a senhora Browning. Para muitos dos curiosos sobre a história da poeta, o clímax poderia se encerrar aí, mas para Flush é apenas a metade da trajetória. Isso porque Elizabeth, o marido e o cachorro fogem para a Itália e Flush se vê obrigado a encarar um novo mundo: “Ali em Pisa, embora houvesse uma profusão de cachorros, não havia categorias distintas: todos – seria possível? – eram vira-latas”. Portanto, talvez Flush seja o primeiro cão da literatura a tomar consciência de classe. A viagem o permite se distanciar de seu mundo e conhecer outros modos de viver. “Flush tinha sido obrigado a encarar a verdade curiosa, e de início perturbadora, de que as leis do Kennel Club não eram universais. Fora confrontado com o fato de que pequenos topetes não são necessariamente fatais”, escreve Woolf. A mudança também ocorre para a senhora Browning, que se vê livre das amarras familiares. Longe de Londres, ela recupera a saúde, consegue se deliciar com o sol e até mesmo com o frio. Flush igualmente sente a liberdade de passear livremente: “Todos os cães eram seus irmãos. Não precisava de uma correia nesse novo mundo, não tinha necessidade de proteção”. O narrador mostra como o cão agora percebia a desigualdade social como um fator castrador de sua liberdade. Outra grande mudança é que, ao ganhar autonomia e se livrar de seus medos, o cachorro e a dona sentem a dependência um do outro diminuírem. “‘Por que ele deveria esperar? Saía correndo sozinho. Agora era dono de si próprio (...)’. Escreveu a sra. Browning; ‘conhece todas as ruas de Florença — faz o que bem entende o tempo todo. Nunca temo quando se ausenta’”. No entanto, apesar de Flush passar por uma verdadeira revolução de personalidade, Woolf escancara como é difícil abandonar velhos pensamentos e hábitos aristocráticos, pois quando o senhor Browning se atrasa na hora de sair para passear com o cão, “Flush ‘se põe diante dele e late da forma mais autoritária possível’”. Além do mais, o animal sofre quando cortam sua espessa pelagem devido a uma epidemia de pulgas: “Seu pelo significava para ele o que um relógio de ouro com o escudo de armas da família representa para um proprietário de terras empobrecido, cujas vastas propriedades tenham sido reduzidas a um curral”. É com esse tom que Woolf caminha até o fim da vida de Flush, cuja biografia é muito mais que a história de um cão. Ele é um retrato da elite britânica e de tantas outras. *BRUNA MENEGUETTI É JORNALISTA E ESCRITORA, AUTORA DO ROMANCE HISTÓRICO ‘O ÚLTIMO TIRO DA GUANABARA’ (2019, REFORMATÓRIO)
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