“Muitas crianças inventam, ou começam a inventar, idiomas imaginários. Tenho feito isso desde que aprendi a escrever. Mas nunca parei”, escreve J.R.R. Tolkien em uma carta de 1951 ao editor Milton Waldman, em tradução inédita incluída na nova edição de O Silmarillion (HarperCollins). Em meio à reedição das obras do autor no Brasil, seu mais ambicioso livro, que ele passou a vida escrevendo, reescrevendo e burilando, publicado apenas de maneira póstuma por seu filho Christopher, chega às prateleiras nacionais.
Trata-se de uma reunião de contos episódicos em sucessão, formando um conjunto de lendas e mitos que corresponde a uma espécie de Antigo Testamento da Terra-média, com as histórias e canções dos “dias antigos”. O Silmarillion inicia com a gênese do mundo e narra a saga do povo élfico para recuperar as Silmarils, joias de rara beleza forjadas pelo elfo Fëanor e roubadas pela entidade maligna Melkor.
Embora tenha um vilão bem definido, essa épica rapsódia passa longe de ser maniqueísta, como muitos acreditam que seja a obra de seu autor. Em O Silmarillion, não há mocinhos: são narrados ao menos três grandes fratricídios, um incesto e diversas traições que levam a verdadeiros genocídios. Mesmo os heróis eternizados nos versos de baladas praticam atos moralmente dúbios, como Túrin Turambar, que mata acidentalmente seu amigo e salvador Beleg e desposa a própria irmã Niënor sem conhecer sua identidade. Afinal, o verdadeiro eixo temático que ecoa por todas as páginas – e sobre o qual Tolkien se debruçou filosófica e religiosamente durante a vida inteira – é a origem do Mal, com M maiúsculo, nos corações dos personagens.
Para compreender de onde vêm essas trevas, é necessário retornar à Criação. O universo de Tolkien tem uma das mais belas cosmogonias dentre todas as mitologias e religiões humanas. No princípio, havia Ilúvatar, cujo pensamento faz surgir como rebentos outras divindades, os Ainur, a quem pede que entoem uma música. “Então, as vozes dos Ainur, tal como harpas e alaúdes, e flautas e trombetas, e violas e órgãos, e tal como incontáveis corais cantando com palavras, começaram a moldar o tema de Ilúvatar em uma grande música; e um som se levantou de intermináveis melodias cambiantes tecidas em harmonia, que passou além da audição para as profundezas e para as alturas, e os lugares da habitação de Ilúvatar se encheram até transbordar, e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e ele não era mais vazio.” No entanto, Melkor, o mais poderoso dos Ainur, começa a imaginar acordes dissonantes, e ocorre uma espécie de duelo musical entre os deuses. É a partir desse embate que o mundo é forjado.
A origem do Mal nesse descompasso sonoro se reflete no mundo palpável: os Ainur “construíram terras, e Melkor as destruiu; vales cavaram, e Melkor os ergueu; montanhas esculpiram, e Melkor as derrubou; mares encheram, e Melkor os derramou”. Corrompendo elfos e humanos com inverdades e intrigas, espalhando sementes sombrias que germinam nas mentes de suas vítimas, Melkor opera pela desinformação. “Longamente esteve a agir, e lento, a princípio, e sem fruto foi seu labor. Mas aquele que semeia mentiras no fim não há de ficar sem colheita e logo poderá descansar do trabalho, de fato, enquanto outros colhem e semeiam em seu lugar. (...) Amargamente os Noldor [uma das raças dos elfos] pagaram pela insensatez de seus ouvidos abertos nos dias que se seguiram.” É graças às fake news de Melkor que os elfos – até então habitantes pacíficosde Valinor, a ilha sagrada onde moram os Valar, como eram chamados os deuses Ainur que decidiram existir no mundo – se rebelam enfurecidos contra as divindades e partem para a Terra-média, onde juram guerrear por suas joias roubadas. Lá, encontram humanos e anões, com quem fazem e desfazem alianças contra Melkor, agora também chamado de Morgoth.
Além do já citado maniqueísmo, outra noção equivocada sobre a obra de Tolkien que pode ser mitigada pela leitura atenta de O Silmarillion é a ideia bastante difundida de que ele não escrevia sobre personagens femininas interessantes. Ao longo das histórias, não faltam mulheres fortes e autodeterminadas, como, entre outras, Lúthien, que liberta seu amante Beren das garras de Morgoth e, com ele, rouba uma de suas Silmarils, em uma façanha inédita; Idril, cuja inteligência evita o extermínio de seu povo quando a fortaleza de Gondolin cai; e Elwing, que desbrava os mares para ir a Valinor, proibida a elfos e humanos, einterceder aos deuses por redenção para a Terra-média. Aliás, muitas dessas histórias (algumas das quais já foram lançadas em obras separadas, como Beren e Lúthien e A Queda de Gondolin) contêm elementos de tragédia grega, lendas arturianas e dramaturgia, soando como uma grande mescla de Sófocles com Shakespeare na voz de bardos medievais.
À medida que os séculos vão se passando, a linguagem se torna menos épica e mais próxima do leitor. Os humanos, mortais, começam a ter mais relevância na narrativa ao lado dos elfos, imortais. E os eventos se tornam menos divinais e mais mundanos. Isso corresponde à visão cristã de Tolkien, que se via num mundo em constante decadência: “Todas as histórias, no fim, são sobre a queda”, escreve na carta a Waldman. Talvez por isso ele medite tanto sobre nossa mortalidade, tida como uma dádiva concedida aos humanos por Ilúvatar: “O fado dos Homens depois da morte, quiçá, não está nas mãos dos Valar, nem foi de todo previsto na Música dos Ainur.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.