THE WASHINGTON POST - Hoje em dia, o racismo e o sexismo são quase universalmente desprezados como males. Mas o especismo, a noção de que os humanos são inerentemente superiores a todos os outros organismos e, portanto, com direito a explorá-los, permanece firmemente enraizado em nossa maneira de pensar – e agir.
A flora e a fauna carismáticas, como golfinhos, sequoias e águias americanas, são consideradas dignas de nossa empatia e proteção. Ervas daninhas, roedores e rastejantes de todos os tipos, por outro lado, são decididamente menos admirados.
No fim da lista de quase todo mundo estão os fungos, os Rodney Dangerfields (comediante da TV americana) do mundo biótico. Eles são odiados por muitos que os veem como parasitas anti-higiênicos que precisam ser eliminados com uma bateria letal de fungicidas, desinfetantes e produtos farmacêuticos.
Mas erradicar os fungos do mundo – mesmo que isso fosse possível – equivaleria a assinar nossa própria sentença de morte, diz Keith Seifert em seu livro The Hidden Kingdom of Fungi: Exploring the Microscopic World in Our Forests, Homes, and Bodies (O Reino Oculto dos Fungos: Explorando o Mundo Microscópico em Nossas Florestas, Casas e Corpos)
O micologista (cientista de fungos) canadense aposentado escreveu uma cartilha acessível sobre uma categoria muito difamada de organismos cujas vidas sustentam as nossas. Sem os fungos, as florestas não poderiam crescer, a agricultura pararia, o carbono não poderia ser reciclado. Rapidamente não haveria vida alguma.
Os fungos, o autor nos diz, são os mansos que há muito tempo herdaram a Terra. Pode haver 10 vezes mais espécies de fungos do que todos os animais, plantas e pássaros juntos. Ninguém sabe ao certo, porque a maioria dos fungos nunca foi adequadamente pesquisada. Rob Dunn, um ecologista que contribuiu com um prefácio envolvente, sugere que renomeemos nossa atual era do Antropoceno de “Mioceno”, porque “por maior que seja nosso impacto humano, ele empalidece em comparação com o dos fungos”.
No entanto, até mesmo a ciência chegou tarde ao seu estudo, e a micologia continua sendo um campo relativamente subfinanciado, cujos acólitos conduzem suas investigações em laboratórios subterrâneos, longe dos reluzentes salões das disciplinas mais proeminentes.
Desequilíbrio climático contribui para que as doenças fúngicas de árvores se espalhem para as florestas de coníferas da América do Norte
Assim como os cientistas que os estudam, os fungos prosperam até nos menores e mais inóspitos nichos, desde o fundo do mar até as rachaduras no piso de madeira. A evolução dos fungos divergiu de outros reinos vivos há 1,5 bilhão de anos, e os fungos permanecem entre os sobreviventes mais engenhosos do nosso planeta. A razão pela qual são tão indispensáveis é que os fungos são os agentes funerários da natureza, encarregados de eliminar os mortos, devolver nutrientes vitais ao solo e garantir a continuidade da vida.
Esses recicladores naturais estão por toda parte. Seifert nos diz que existem cerca de 2.000 milhas de hifas fúngicas – filamentos microscópicos muito mais finos que um fio de cabelo humano – em uma única colher de chá de um rico solo orgânico. Os fungos habitam nossas entranhas e colonizam nossa pele e folículos capilares. Esses companheiros raramente representam uma ameaça à vida humana, garante o autor, embora existam exceções notáveis: a aspergilose, por exemplo, que mata milhares de pessoas por ano por causa de infecções hospitalares. Cogumelos venenosos (cogumelos são os corpos frutíferos produzidos por certos fungos) contêm micotoxinas mortais que desencorajam os forrageadores.
Na maioria das vezes, porém, os fungos vivem em harmonia com os ecossistemas que ajudam a manter em equilíbrio. Mas esse equilíbrio está sendo perturbado. Com a mudança climática, as doenças fúngicas das árvores espalhadas por besouros estão destruindo as florestas de coníferas em toda a América do Norte. Ferrugens e smuts fúngicos que estão se proliferando em nosso mundo cada vez mais quente e úmido põem em risco a oferta mundial de café. Sete das nove principais doenças agrícolas que ameaçam nosso suprimento de alimentos são fúngicas.
Apesar de seu potencial destrutivo, os fungos têm um dom generoso para trabalhar cooperativamente com outros organismos. Sua parceria simbiótica mais conhecida é com o líquen, no qual as algas produzem alimento para os fungos por meio da fotossíntese, e os fungos unem as algas em um organismo composto cuja função ecológica mais importante é quebrar as rochas para criar um novo solo.
Fungos eliminam todos os organismos mortos e devolvem os nutrientes vitais ao solo para dar continuidade à vida
Menos conhecidas – pelo menos até recentemente – são as vastas redes subterrâneas de micélio nas florestas, denominadas “a teia da floresta”, que conectam as árvores umas às outras e facilitam a transferência de nutrientes e informações entre elas.
As plantas dependem dos fungos que vivem em suas raízes para ajudá-las a absorver melhor os nutrientes, proteger-se contra patógenos e tolerar a seca. Seifert diz que precisamos aproveitar esses talentos. Em vez de adubar os campos com fertilizantes à base de nitrogênio para estimular artificialmente o crescimento das plantas, o autor prevê uma mudança para os “biofertilizantes” – inoculantes ricos em fungos que ajudarão as plantações a retirar o nitrogênio diretamente do ar.
Os fungos também estão sendo cultivados como substitutos da carne, e suas fibras de micélio foram utilizadas na fabricação de embalagens biodegradáveis e materiais de construção. Esses microrganismos vorazes estão sendo usados para limpar derramamentos de óleo e resíduos radioativos e para decompor plásticos. Os bioprospectores estão procurando novas variedades de fungos na natureza que possam ajudar a produzir uma nova geração de produtos farmacêuticos e drogas psicoativas. (O alucinógeno LSD foi feito do fungo do esporão do centeio que cresce no trigo.)
O autor credita a esses humildes organismos a capacidade de provocar uma revolução na forma como os humanos se relacionam com a natureza. A tecnologia é muitas vezes vista como oposta à ordem natural. Mas o florescente campo da “micotecnologia” aponta para um futuro no qual aprenderemos a trabalhar junto com o mundo natural e não contra ele. “Observe os fungos. Aprenda com seus métodos”, insiste Seifert.
O livro é cheio de fatos, mas carece do tipo de anedotas divertidas e apartes que podem facilitar a leitura. Também pula de tópico em tópico sem explorar nada com muita profundidade. São falhas menores diante da natureza da tarefa que Seifert estabeleceu para si mesmo – fornecer uma pesquisa enciclopédica do campo. Para os curiosos inatos, The Hidden Kingdom of Fungi (O Reino Oculto dos Fungos) será uma introdução reveladora a um mundo secreto sobre o qual a maioria de nós sabe muito pouco. TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.