Entenda como o estigma da AIDS espalha desinformação durante a epidemia de Varíola dos Macacos

Com avanço do vírus, macacos, que não transmitem doença, foram mortos e comunidade gay enfrenta preconceito

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Por Dan Zak
Atualização:

Eric Sawyer sente um medo familiar. No vilarejo gay de Fire Island Pines, onde ele é dono de um bangalô, os homens estão falando sobre sintomas medonhos, examinando uns aos outros à procura de qualquer mancha, buscando os poucos atendimentos médicos. Para Sawyer, 68 anos, esse tipo de ansiedade não é um tema da ciência, mas uma cicatriz no coração.

“Embora a varíola dos macacos não seja mortal, existem inúmeras histórias de horror, assim como existia com o HIV”, diz Sawyer, ativista de longa data que em 1987 estava no ACT UP, o coletivo comprometido com o fim da epidemia de AIDS. “Isso abre muitas feridas, traz de volta o luto de ter perdido tantos amigos”.

Durante a epidemia da AIDS, Keith Haring militou contra a desinformação Foto: WikiArt

Desde 17 de maio foram identificados quase 5.200 casos de varíola dos macacos nos Estados Unidos, nenhum fatal. A esmagadora maioria dos infectados em todo o mundo são de homens que fazem sexo com homens, um grupo demográfico cujas redes sexuais amplas e densas são um canal para um vírus que se espalha por contato físico próximo, muitas vezes íntimo.

a varíola dos macacos chega no momento em que os gays nos Estados Unidos já estão se sentindo estressados e vulneráveis

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O flagelo talvez não seja tão grave quanto o HIV ou o coronavírus, mas a varíola dos macacos chega no momento em que os gays nos Estados Unidos já estão se sentindo estressados e vulneráveis. Sawyer pensa na recente onda de homofobia, como a legislação anti-gay em nível estadual e o aumento nas ameaças e ataques a pessoas LGBT+. Um sintoma social da varíola dos macacos é o medo de que o país esteja entrando em um túnel do tempo: na década de 1980, a AIDS foi erroneamente rotulada na mídia como “deficiência imunológica relacionada aos gays”, e a comunidade gay sofreu não apenas com a doença, mas também com o ostracismo.

“Temo que um grande surto na comunidade gay de uma coisa como a varíola dos macacos possa exacerbar os ataques diretos e planejados à nossa comunidade”, diz Sawyer.

Enfermeira do Centro de Saúde Northwell, em Fire Island-Cherry Grove,Nova York, segura um frasco da vacina da monkeypox. Foto: Eduardo Munoz/Reuters

Mas a comunidade está mais visível, poderosa, aceita e preparada do que 40 anos atrás, graças ao trabalho de pessoas como Sawyer, que diz ter ajudado a conseguir vacinas para 2 mil visitantes de Pines durante três semanas em julho. Desde a crise da AIDS, a comunidade gay ajudou a criar protocolos, redes e modelos de resposta à pandemia que têm sido usados para enfrentar a covid-19 e, agora, a varíola dos macacos.

“Há uma linha direta de herança, em termos da cultura do que estamos fazendo”, diz Keletso Makofane, 35 anos, epidemiologista que está criando um estudo liderado por gays sobre redes sexuais e sintomas de varíola dos macacos na cidade de Nova York para orientar a distribuição do limitado suprimento de vacinas. O ACT UP ainda é um importante centro de mobilização de pessoas, diz ele, e as pessoas queer estão realizando reuniões semanais, organizando comitês e planejando ações coletivas para enfrentar a varíola dos macacos.

Imagem de microscópio eletrônico mostra sinais da varíola dos macacos em uma amostra de pele humana Foto: CDC via AP

“Esse vocabulário vem do ACT UP, e outros movimentos de intervenção, como o Occupy, estão reverberando”, diz Makofane, que trabalha principalmente em seu apartamento no nono andar no Harlem. “Não estamos criando estruturas do zero”.

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O vírus da varíola dos macacos é muito diferente do HIV, e 2022 está a anos-luz de 1981. Mas há um eco espiritual no surto de hoje, “uma memória cultural reflexiva que é compartilhada mesmo entre as pessoas que não o viveram no passado”, diz Demetre Daskalakis, 48 anos, diretor da divisão de prevenção de HIV/AIDS do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Uma memória cultural reflexiva que é compartilhada mesmo entre as pessoas que não o viveram no passado

Demetre Daskalakis, Diretor da divisão de prevenção de HIV/AIDS do CDC

Há a resposta do governo, que tem sido lenta e dispersa, de acordo com especialistas em saúde pública que criticaram a inicial falta de comunicação clara sobre testes, sintomas e quem estava em maior risco. Há o estigma impingido à comunidade que sofre os primeiros impactos. Há uma raiva latente nos comícios contra agências de saúde pública, contra qualquer um que possa fazer uso político do surto. E há também as lesões na pele. O sarcoma de Kaposi era um sinal de morte quase certa na década de 1980, e agora as pústulas da varíola dos macacos são um prenúncio de dor lancinante, embora temporária e não mortal.

Profissionais da saúde de Nova York ajudam as pessoas a se registrarempara tomar a vacina contra a varíola dos macacos. Foto: Mary Altaffer/AP

Os riscos são muito mais baixos em termos de mortalidade, mas a agitação é alta. Qualquer erupção na pele é suspeita. Cada pelo encravado é uma preocupação. Gays vêm sendo xingados nas ruas, como se fossem portadores de doenças. Mensagens de texto sobre possíveis contatos – comunicação rotineira entre homens gays sobre infecções sexualmente transmissíveis mais comuns – agora têm uma aura mais agourenta. A comunidade LGBT+ está inspecionando todas as orientações de saúde e todos os tweets para identificar qualquer repreensão ou ofensa sexual. E estão faltando novos adjetivos e metáforas para descrever a dor que pode acompanhar a infecção: “visceral”, “excruciante”, “facas”, “ferrugem”.

“Acho que estamos todos exaustos”, diz Nicholas Diamond, 29 anos, gerente de serviços editoriais da Fundação Elizabeth Glaser (e marido de Makofane). “Estávamos vendo a luz no fim do túnel da pandemia de covid-19 e ansiosos por um verão de festa, mas agora temos de lidar com a varíola dos macacos e um governo que realmente se atrapalhou e não aprendeu nada com as lições da covid-19. Então todo mundo está cansado. E é difícil falar sobre qualquer coisa quando você está preocupado, pensando se sua última transa vai te deixar doente, se sua última ida ao bar vai te deixar doente. E tenho me perguntado se isso é o que nossa comunidade estava sentindo em 1981”.

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Profissional de saúde faz teste para a varíola dos macacos. Foto: Rungroj Yongrit/EFE/EPA

É assustador ficar sentado em uma cadeira dobrável, cercado por outros homens gays, todos esperando para serem vacinados por profissionais de saúde que usam equipamentos de proteção individual e imediatamente limpam cada cadeira vazia com desinfetante. “Momentos de volta ao passado”, nas palavras de Amanda Cary, gerente da clínica de saúde sexual para homens gays Whitman-Walker em Washington, DC – embora, aos 38 anos, ela não tenha vivido pessoalmente os momentos originais.

Em uma quinta-feira semanas atrás, Cary disse ao seu primeiro paciente, que ela estava testando para varíola dos macacos, que um laboratório de testes inicialmente proibiu seus flebotomistas de tirar sangue de pessoas com casos suspeitos ou confirmados. Cary estava usando EPI completo, seguindo as diretrizes do CDC.

Uau, parece os anos 80 - Disse um paciente sobre a situação da epidemia

“O paciente falou: ‘Uau, parece os anos 80’”, diz Cary, observando que o paciente também era jovem demais para ter vivido o auge da crise. “É estigmatizante. E também é meio assustador, especialmente no começo. Com os primeiros dois pacientes, expressei muita segurança: ‘Estou usando uma roupa maluca, mas esse vírus não vai te matar. Você vai superar. Vai desaparecer por conta própria. Temos o tratamento disponível”.

Um epidemiologista da área de DC, na casa dos 30 anos, que contraiu varíola dos macacos em meados de junho, suportou cinco dias de febre e suores noturnos, virilha e linfonodos inchados e lesões nos órgãos genitais e no reto. Uma “dor profunda e visceral”.

“E tem aquele gatilho do estigma e da vergonha”, diz o epidemiologista, que falou sob condição de anonimato por causa da preocupação com esse estigma. “‘Oh, se você pegou HIV foi porque você é muito safado’, ou, ‘Se você pegou varíola dos macacos é porque é muito safado’. Os aspectos de saúde mental e estigma estão todos interligados. Como podemos superar isso?”.

'Stop Ainds', um dos cartazes de Keith Haring que eram expostos na Pop Shop, em Nova York Foto: WikiArt

Uma possibilidade é lembrar uma lição importante da crise da AIDS: educar as comunidades em vez de fazer proibições categóricas que aumentam o estigma, diz Daskalakis, do CDC, que divulga orientações para sexo seguro e socialização por meio de redes sociais e influenciadores.

“As ideias absolutas tendem a fechar o pensamento das pessoas”, diz Daskalakis. “Então, a receita vencedora é pensar numa estratégia de redução de danos – pela qual você dê às pessoas o conhecimento de que elas precisam para fazer escolhas informadas”.

Os gays tiveram de ser mais francos uns com os outros, correndo o risco de parecerem chatos ou alienantes. Em 19 de julho, o ativista Mark S. King escreveu um ensaio intitulado: “A varíola dos macacos é uma coisa gay. Precisamos dizer isto”.

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“Haverá estigma, julgamentos e homofobia? Claro que sim. E teremos de lidar com isso”, escreveu King. “Mas não significa que vamos esconder fatos cruciais em mensagens vagas e evasivas”.

Homem é vacinado contra a varíola dos macacosem Nova York. Foto: Eduardo Munoz/Reuters

A positividade sexual define a vida gay moderna, com certeza, mas também a conscientização, a prevenção e o tratamento de doenças. Nicholas Diamond ajudou a criar um panfleto de dicas no mês passado, intitulado “Seis maneiras de fazer sexo seguro em tempos de varíola dos macacos”.

“Meninas, odiamos dizer isso, mas talvez esteja na hora de dar uma parada com o sexo grupal e as saunas até que todos nós tomemos as vacinas”, escreveu Diamond com dois de seus colaboradores na pesquisa sobre a varíola dos macacos em Nova York, onde o prefeito na segunda-feira declarou estado de emergência devido ao surto. “É uma coisa temporária e por amor ao sexo grupal e às pessoas gostam dele”.

A Organização Mundial da Saúde foi na mesma linha na semana passada dizendo, essencialmente: pessoal, vamos segurar um pouco.“Para homens que fazem sexo com homens, isso inclui, no momento, reduzir o número de parceiros sexuais” e “pensar duas vezes antes de fazer sexo com novos parceiros”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.

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Funcionário daBavarian Nordic trabalha em um laboratório da empresa, que possuíaprovação para desenvolveruma vacina contra a varíola dos macacos. Foto: Lukas Barth/Reuters

“Algo que muitas pessoas não querem dizer em voz alta é: homens gays têm mais parceiros sexuais, na média”, diz Steven W. Thrasher, cujo novo livro The Viral Underclass: The Human Toll When Inequality and Disease Collide traça a interação entre injustiça sistêmica e vulnerabilidade às doenças. “Mas há uma responsabilidade que anda de mãos dadas com a dimensão sexual de nossas vidas. Não é só uma orgia para todo mundo”.

A comunidade está compartilhando conhecimento, pressionando por ações governamentais e promovendo a redução de danos. Um evento queer na sexta-feira em São Francisco anunciou verificações de temperatura, máximo de 60% de lotação e um “check-in de consentimento e bem-estar” na porta, onde cada participante escolhia pulseiras codificadas por cores de acordo com suas preferências pessoais. Em 25 de julho, o Washington Blade realizou uma palestra presencial sobre varíola dos macacos no Eaton, na K Street NW em D.C., onde cerca de 50 membros da comunidade LGBT+ e especialistas em saúde pública trocaram conselhos, observações e preocupações. A filial do Blade em Los Angeles fez um evento parecido em 27 de julho, com a presença de um morador local chamado Matt Ford, que foi um dos primeiros americanos a detalhar nas mídias sociais sua experiência com esse surto.

Levar esse tipo de testemunha combate o estigma e faz com que o problema ganhe concretude para as pessoas, disse o palestrante de Los Angeles, Dan Wohlfeiler. E também remonta ao passado.

O Memorial Nacional à Aids, em San Franciso, na Califórnia, um dos mais de 60 locais que homenageiam as vítimas da epidemia de HIV na América do Norte Foto: Wikimedia Commons

“Em 1983 vi um jovem chamado Mark Feldman se levantar diante de uma multidão desse tamanho numa sinagoga de São Francisco e falar sobre ter HIV”, disse Wohlfeiler, que por décadas trabalhou na prevenção de HIV e DSTs. “E ele disse: ‘Qualquer um que queira vir aqui ver minhas lesões, pode vir’. E foi um momento incrivelmente poderoso. E agora temos Matt e outros se apresentando e falando sobre sua experiência e seus sintomas – que felizmente não são tão sérios, mas são claramente dolorosos – e acho que precisamos dizer um grande muito-obrigado a Matt e a outras pessoas”.

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Mas toda essa conversa sobre se a varíola deve ser descrita como uma doença “transmitida sexualmente” ou “uma coisa gay” – “tudo isso só está acontecendo porque fomos pegos de surpresa, porque nosso governo não respondeu proativamente”, diz Kenyon Farrow, ativista de saúde pública na região de Cleveland.

Como Thrasher escreve em seu livro, “narrativas individualizadas não apenas trabalham para transferir a culpa do estado e da sociedade para o indivíduo, mas também isolam os indivíduos, tanto nas políticas quanto na sociedade”.

Aqui tratando novamente da aids e do vírus HIV, que àquela altura matava e assustava a população Foto: Oliviero Toscani/Divulgação Benetton

Há lições maiores aqui neste surto atual, como houve lições maiores durante os surtos anteriores – lições sobre homofobia persistente, racismo estrutural e desigualdade global que fomentaram a desatenção a surtos anteriores de varíola dos macacos na África Central e Ocidental.

“A conversa mais óbvia que deveríamos ter – e isso já deveria estar claro para todo mundo nos últimos dois anos de covid – é que nosso sistema de saúde público está nos deixando na mão”, diz Farrow, que é diretor administrativo de advocacia e organização da PrEP4All, uma organização dedicada a aumentar o acesso a medicamentos para o HIV. “E, se quisermos ter alguma chance de evitar um conjunto contínuo e constante de crises de doenças infecciosas, é melhor começarmos reimaginar a saúde pública nos Estados Unidos e no mundo”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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