Escritor argentino se inspira em Borges e renascentistas para romance

'Anatomia da Melancolia', de Carlos Daniel Aletto, conta a busca de um médico medieval pela bílis negra

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Por Sérgio Medeiros
'A Extração da Pedra da Loucura', obra de Hieronymus Bosch, que é um dos personagens históricos de 'Anatomia da Melancolia', livro do argentinoCarlos Daniel Aletto 

No conto O Imortal, Jorge Luis Borges declara que há algo de falso nesse relato da vida de um homem eterno, e mostra que, para narrar sua aventura, só sobraram “palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros”. Num segundo conto fantástico, O Aleph, o mestre argentino narra a experiência mística de um mortal que pôde ver cada coisa do universo de todos os pontos de vista, experiência que, supõe-se, o protagonista do outro conto também poderia ter, durante sua perambulação interminável pela Terra. Se algum escritor contemporâneo reunisse esses dois contos clássicos sobre a vida de dois personagens que se completam um ao outro, um eterno e o outro efêmero, o que conseguiria produzir em termos de ficção? A resposta a essa questão está, a meu ver, no breve romance Anatomia da Melancolia, do escritor argentino Carlos Daniel Aletto, nascido em 1967 e atento leitor de Borges, que forneceu, aliás, a epígrafe do livro. 

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Ambientado no Renascimento e recheado de personagens históricos como Hieronymus Bosch e Felipe II de Espanha, seu início é tipicamente borgiano, pois descreve, como em tantos poemas e contos do seu predecessor, a descoberta casual de um manuscrito: “Havia solicitado um microfilme de um fólio renascentista e, ao ver a primeira imagem, percebi que não era a capa da obra que eu procurava, e sim um escrito atribuído ao anatomista Andrés Vesalio”. Escrito em 1615, a Anatomia da Melancolia, descoberta na Bibliothèque Nationale de France, antecede em seis anos a célebre obra The Anatomy of Melancholy, de Robert Burton. 

Ambos os autores reconhecem que se dedicaram ao estudo da ação da bílis negra sobre o espírito porque eles mesmos sofriam de melancolia e desejavam livrar-se dela... Assim como no conto O Imortal, em que se misturam os acontecimentos de duas vidas diferentes, também no romance de Aletto lemos, de forma alternada, as aventuras do médico Andrés Vesalio, condenado à fogueira por haver dissecado um homem vivo, e a peregrinação mística de um cavaleiro e poeta. 

Tanto a pesquisa do médico, que quer provar que nossa anatomia é diferente da dos macacos (a nossa está povoada de demônios, os quais fabricam a tristeza), quanto as visões do peregrino, que ascende do inferno ao purgatório e entrevê o paraíso, são narradas numa linguagem saborosa, que reinventa um falar de uma suposta época remota. O encontro do médico com o poeta místico é o ponto alto do livro, mas quem rouba a cena, a meu ver, é um cachorro vira-lata que os acompanha a partir de então. Talvez ele seja um dos avatares de Argos, o cão de Ulisses deitado no esterco. As associações são vertiginosas neste romance, e o leitor, mesmo sem se dar conta, vai produzindo e introduzindo no enredo novas citações, fruto da sua leitura, as quais se acomodam muito bem àquilo que já está no texto, que é, nesse aspecto, um tecido de muitas cores, como diria Borges. Certamente a magia do livro reside nessa proliferação de citações reais e virtuais, as quais, no entanto, não deixam o texto pedante, pois ele é, do começo ao fim, ágil e acessível. Por isso, esta “minúscula” (como convém, talvez, aos apressados leitores de hoje) Anatomia da Melancolia se lê de uma assentada. 

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Carlos Daniel Aletto busca inspiração no também argentino Jorge Luis Borges Foto: Editora Iluminuras

Túndalo, o poeta peregrino (trata-se, já se vê, pelo nome do personagem, de um avatar do célebre herói medieval, cujas visões infernais e paradisíacas foram escritas em gaélico) se embebeda numa taverna, já perto do final do romance, e o médico decide levá-lo para sua casa, a fim de dissecá-lo ainda vivo: “Tudo isso diante do olhar tristonho de um cachorro que com certeza havia sido acolhido no caminho pelo peregrino e que nos acompanhava abanando o rabo, e em silêncio, até a porta do palácio.” Depois de abrir-lhe a pele do pescoço até debaixo do umbigo e buscar nas suas entranhas os demônios que fabricam a bílis negra (a extirpação desses seres maléficos seria um caminho para se atingir o paraíso, vale dizer, a imortalidade), o médico limpa sua mesa, lava as mãos e sai para a rua sem nenhuma culpa. “E nisso ouvi na porta do palácio os latidos e uivos do cachorro de Túndalo”, conta o médico. “Quando comecei a caminhar, ele me seguiu por umas cinco ruas”. Túndalo parece haver reencarnado no médico, ou pelo menos, Andrés Vesalio é agora também o outro. 

A aventura é mais complicada do que parece e eu poderia falar muito mais sobre o breve e saboroso romance de Aletto, que não é só sobre a bílis negra, mas também sobre a bílis amarela e outros (muitos outros) humores... 

*É poeta, dramaturgo e ensaísta. Publicou, entre outros, 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' e 'As Emas do General Stroessner'

Capa do livro 'Anatomia da Melancolia', de Carlos Daniel Aletto 

Anatomia da Melancolia Autor: Carlos Daniel AlettoTradução: Maria de Paula Gurgel RibeiroEditora: Iluminuras 128 páginas R$ 42

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