Existem apostas que são verdadeiras barbadas, eriçadas de ases na manga e coelhos na cartola. É o caso dos obras de Bill Bryson, que instruem e divertem, somando saber a sabor. Americano de 68 anos, residente da Inglaterra, BB começou pelos livros de viagens e virou um polímata. Vieram uma supimpa história da língua e da cultura americanas (Made In USA), um apetitosa biografia de Shakespeare (O Mundo é um Palco) e um esfuziante compêndio científico (Brevíssima História de Quase Tudo). Não perco uma vírgula do que ele escreve.
A mais recente guloseima é Corpo, Um Guia Para Usuários, sobre o corpitcho de cada um de nós, nosso Uber biológico. Além de leituras omnívoras, BB entrevistou os maiores crânios de cada área. Resultado: 448 páginas tão arrebatadoras que me deram vontade de devolver minha pena ao ganso.
Afivelem os cintos. Já em cem páginas ficamos sabendo que o adulto médio toca seu rosto 16 vezes por hora; que o número de expressões faciais humanas chega a 10.000; que as lágrimas vêm em três variedades; que o nosso olho pode distinguir entre 2 milhões e 7,5 milhões de cores; que a Mona Lisa de Leonardo não tinha sobrancelhas; que o ser humano mais antigo do mundo (Jeanne Louise Calment) viveu até os 122 anos e parou de fumar aos 117.
Entre informações pitorescas e transcendentais, o leitor vai verificando sua assombrosa ignorância sobre o assunto – apesar de jogar em casa. Como diz BB, quem seria capaz de apontar onde fica o baço? A diferença entre tendões e ligamentos? Quantas vezes por dia piscamos? E olhe que, desembalado, você é imenso. Seus pulmões esparramados cobririam uma quadra de tênis, e as vias aéreas dentro deles, esticadas, iriam de Londres a Moscou. Mas ninguém precisa pensar nessas coisas, pois diariamente nosso habitáculo executa trocentas tarefas em piloto automático. Desde que você começou a ler esta frase, há um segundo, seu corpo produziu 1 milhão de glóbulos vermelhos. Ah: piscamos 14 mil vezes por dia – no total, nossos olhos ficam fechados por 23 minutos enquanto estamos acordados.
Certo, algumas passagens do livro nos fazem crispar o esfíncter – aquelas sobre as panes na nossa carroceria. Agora morremos mais por doenças não transmissíveis do que por doenças contagiosas. Ou seja: morremos mais de herança genética. Daí a dica de Bernard Shaw: “A melhor maneira de garantir a longevidade é você escolher os seus pais.” O melhores preventivos são óbvios: dieta salutar e exercícios. Mas óbvio não significa automático: como observa BB, “hoje em dia, mais pessoas na Terra sofrem de obesidade que de fome.” Veganismo saudável? “O vegetal mais popular nos EUA, de longe, é a batata frita.”
Todos santo dia, de uma a cinco células humanas se tornam cancerígenas, e seu sistema imunitário as captura e extermina, para elas deixarem de ser bestas. Sim: mais de mil vezes por ano você desenvolve a doença mais temida, e seu corpo sempre o salva. Até que comece a dormir em serviço. O câncer “é sobretudo uma coisa da idade. Entre o nascimento e os 40 anos, os homens têm apenas 1 em 71 chances de contraí-lo, e as mulheres 1 em 51. Acima dos 60 anos, as chances triplicam entre os homens e quadruplicam entre as mulheres.”
O cérebro é aquele quilo e meio de massa esponjosa que temos entre as orelhas. “O grande paradoxo dele é que tudo o que sabemos sobre o mundo vem de um órgão que, por si mesmo, nunca o viu. O cérebro existe no silêncio e na escuridão, como um prisioneiro numa masmorra”. Por outro lado, como realçam os versos de Emily Dickinson que BB cita: “O cérebro supera o céu em vastidão/Pois, justaponha um e outro/O primeiro abrangerá o segundo/Facilmente, e, de quebra, você.”
Como assinala BB: “Seu cérebro é você – o resto não passa de encanamentos e andaimes”. No conjunto, o cérebro humano contém cerca de duzentos exabytes de informação, “o mesmo que todo o conteúdo digital do mundo atual”. Mais: “O curioso é como o cérebro é tão desnecessário. Para sobrevivermos no planeta, não precisamos fazer música ou filosofar – então por que investimos tanta energia e risco em produzir uma capacidade mental de que não precisamos de fato? Essa é apenas uma das muitas coisas sobre ele que seu cérebro não lhe conta.”
Outra? A consciência – pilar da filosofia desde sempre. Ou: o que é um pensamento? “Não podemos prendê-lo em um pote de vidro ou observá-lo numa lâmina de microscópio, contudo um pensamento é uma coisa real e definida. Mas não sabemos de fato o que é pensar, em um sentido fisiológico profundo.” Hoje a principal controvérsia epistemológica é entre neurocientistas e filósofos, sobre se existe ou não essa tal de “consciência”. Já nem falando no “cogito” cartesiano, no “inconsciente” freudiano (Freud sempre morreu de vergonha por ser impossível localizar fisiologicamente o id, o ego e o superego), ou no inconsciente coletivo de Jung.
A ideia de que usamos apenas 10% do nosso cérebro é um mito boboca. Como observa BB, “seu uso do cérebro pode não ser dos mais aconselháveis, mas você emprega todo ele”. (No caso de algumas pessoas que todos conhecemos, parece difícil acreditar nisso.) E há inúmeras síndromes estranhas associadas a distúrbios neuronais. A de Anton-Babinski é uma doença em que as pessoas são cegas, mas se recusam a crer nisso. Na síndrome de Capgras, você fica convencido de que seus íntimos são impostores. Na de Kluver-Bucy, a vítima desenvolve o desejo de comer e fornicar indiscriminadamente (para compreensível consternação dos seus entes queridos).
Talvez a mais estrambólica seja a de Cotard, em que a pessoa acredita que morreu, e ninguém consegue convencê-la do contrário. Bom, talvez só matando-a.
Numa época em que segundo alguns o gênero sexual não passa de uma construção cultural, a ciência mais atual atesta que o buraco continua sendo mais embaixo mesmo. Mas parece surpreendente termos ignorado durante tanto tempo por que uns nascem machos, e outros, fêmeas. Os cromossomos foram descobertos em 1880 por um anatomista alemão, mas demorou para cair a ficha. Hoje sabemos que as fêmeas têm dois cromossomos XX e os machos um X e um Y. Porém, apenas em 1990 duas equipes médicas em Londres identificaram uma região determinante do sexo cromossomo Y, que chamaram de gene “sry” (Região de Determinação do Sexo no Y, em inglês).
Meninos e meninas são diferentes de inúmeros modos. Mulheres (saudáveis e até esbeltas) têm cerca de 50% mais de gordura corporal que os homens. Como diz BB, “isso não só as torna mais atraentes para os pretendentes, como também cria reservas de gordura usadas na produção de leite”. Os ossos femininos também se desgastam mais cedo, em especial após a menopausa, e por isso elas sofrem mais fraturas em idade avançada. Mulheres têm duas vezes mais Alzheimer (em parte porque vivem mais) e metabolizam o álcool de forma diferente, por isso se embriagando com mais facilidade e morrendo mais de cirrose.
Os homens têm seu próprio quinhão de pepinos. Desenvolvem o mal de Parkinson com mais frequência e cometem mais suicídio, embora sofram menos depressões. São mais vulneráveis a infecções e lesões e tendem a morrer mais cedo.
Chocante mesmo é como durante séculos soubemos tão pouco sobre a mulherada e como elas funcionam (e nem falo na dimensão psicológica, com aquele suspiro célebre de Freud, segundo o qual “a mulher é o continente desconhecido”). Como indica uma especialista que BB cita (Mari Rouch), “as secreções vaginais eram até ontem o único fluído corporal sobre o qual não se sabia quase nada, a despeito de sua importância para a concepção e para a percepção geral de bem-estar da mulher.” Até anteontem, então, questões específicas femininas – como a menstruação – constituíam um mistério quase completo para a ciência médica.
Para se ter uma ideia, a menopausa, outro evento marcante na vida de uma mulher, oficialmente só foi observada em 1858, quando a palavra é registrada pela primeira vez. “Exames do abdômen quase nunca eram conduzidos e exames vaginais, menos ainda – quaisquer investigações do pescoço para baixo eram feitas com o médico tateando às cegas sob um lençol, com os olhos fixos no teto. Muitos médicos usavam um manequim para que a mulher pudesse apontar a parte afetada sem precisar mostrá-la ou mesmo mencioná-la pelo nome.”
E as barbeiragens do espermatozoides? “Por um lado, eles são heróis: os astronautas da biologia humana, as únicas células projetadas para deixar nosso corpo e explorar outros mundos.” Por outro, na hora H parecem uns Rubinho Barrichello. “São péssimos nadadores, sem nenhum senso de direção, curiosamente mal preparados para a única tarefa que a evolução os incumbiu”. Sem auxílio, levariam séculos a cruzar um espaço da largura de uma palavra monossilábica neste texto. A “sorte” é o orgasmo masculino, uma explosão de prazer que é como o lançamento de um foguete. Ainda assim, as chances de fertilização bem-sucedida em uma única transa foi estimada em 3%.
BB nota que “sexo não é de fato necessário. As lagartixas deram fim ao macho por completo. Elas põem ovos, que são clones da mãe, e estes produzem uma nova geração de lagartixas. Do ponto de vista materno, é ótimo, pois significa que 100% dos seus genes serão herdados. Com o sexo convencional, cada parceiro passa adiante apenas metade de seus genes – o que vai diminuindo a cada geração. Mas também significa que podemos evoluir: conservar os genes benéficos e descartar os que atrapalham nosso bem-estar coletivo. Uma clonagem resulta na mesma coisa repetidamente. A diferença nos deu Rembrandt e Einstein (e um bando de manés também, claro).
O acasalamento é mesmo supérfluo? Bom, tem aquele provérbio inglês sobre o sexo: “O custo é exorbitante, a posição ridícula, o prazer efêmero”. Ainda assim, quanto a mim continuo a favor de unir o inútil ao agradável.
CORPO AUTOR: BILL BRYSON TRADUÇÃO: CÁSSIO DE ARANTES LEITE EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 448 PÁGS., R$ 79,90
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