Todo livro impresso nasce de uma árvore. Ela morre, ele nasce. Um mau livro é sempre um desperdício, um dendrocídio. Ao conceber sua Biblioteca do Futuro (em inglês, Future Library), a artista plástica conceitual escocesa Katie Paterson preocupou-se com as duas pontas do processo, integrando a fonte da celulose e seu subproduto final de modo ainda mais orgânico e simbólico. Não fez uma escultura, um livro-árvore, nem uma instalação, com livros pendendo de galhos e troncos. Sua Future Library é apenas uma biblioteca, conceitualmente sui-generis, heterodoxa, mas uma biblioteca.
Paterson acredita que no futuro as pessoas ainda lerão livros impressos. Com apoio financeiro de um fundo sueco, reservou uma imensa gleba na floresta de Nordmarka, nos arredores de Oslo, para o plantio de mil sementes de pinheiros, que daqui a 100 anos estarão no ponto para gerar papel, que em seguida se transformarão em livros – de autores cuidadosamente selecionados para evitar ao máximo a sensação de desperdício e a grita dos ambientalistas. Como os manuscritos ficarão hermeticamente guardados durante 100 anos, seu conteúdo só se tornará público no próximo século eseus leitores ainda estão para nascer.
A Biblioteca do Futuro é um sucedâneo daquelas cápsulas do tempo, na moda no século passado, em que se guardavam artefatos culturais e utensílios diversos do período para a curiosidade de nossos pósteros. As cápsulas ficavam muito mais tempo incubadas (a que enterraram em Nova York em 1939 só será aberta em 6939), mas, ainda assim, o prazo de dez décadas para textos a ser fruidos com olhos de outra época me parece um bocado longo. Nenhum de nós poderá sequer testemunhar sua repercussão com os velhinhos que ainda nascerão em 20 anos.
Quem estiver vivo em 2114 terá oportunidade de ler a 16.ª ficção da canadense Margaret Atwood, Scribbler Moon (Lua de Escritor), entregue à Biblioteca do Futuro três anos atrás. A celebrada autora de O Conto da Aia foi o primeiro nome convidado pelo projeto, que prevê um total de 100 autores, globalmente selecionados: um por ano, até 2114, quando farão parte de uma antologia, de que serão impressos somente mil exemplares.
Até lá, sigilo absoluto. Nem Paterson e a curadora do projeto, Lisa Le Feuvre, podem ler os manuscritos, que ficarão permanentemente guardados na Deichmanske Bibliotek, a nova biblioteca pública de Oslo, a ser inaugurada em 2019. Coube ao britânico David Mitchell, autor de Atlas de Nuvens, ser o segundo. Como prevê o regulamento, só ele conhece o conteúdo do texto, que tanto pode ser um verso, como um conto ou uma novela. Pelo título, From Me Flows What You Call Time (De Mim Emana o que Você Chama de Tempo), tem cara de romance, de resto, sua especialidade.
O escolhido do ano passado foi o poeta, escritor e artista visual islandês Sjón, mais badalado como parceiro de Bjork e de quem já traduziram aqui Pela Boca da Baleia e A Raposa Sombria. Num vídeo, revelou tender para algo que refletisse sobre o próprio conceito de biblioteca do futuro e lamentou não estar vivo em 98 anos para interagir com seu tradutor e verificar que temas e formas de abordagem e linguagem do presente sobreviverão no futuro.
“Será que as pessoas ainda terão o hábito de ler livros em 2114?”, perguntou-se Atwood ao plantar sua mudinha de pinheiro na floresta de Nordmarka. E outras dúvidas enfileirou: “Haverá quem se interesse em me ler, daqui a 100 anos? Que palavras cairão em desuso até lá e que outras surgirão?” Encantada com “o tempo de conto de fadas” do projeto (“Bela Adormecida também dormiu 100 anos”), comparou sua dificuldade à do orwelliano Winston Smith, de 1984, ao iniciar seu diário.
Para quem Smith o escrevia? Sim, para o futuro, para os não nascidos, mas como fazer para comunicar-se com o futuro? “Ou bem o futuro seria semelhante ao presente e não daria ouvidos ao que ele queria lhe dizer, ou bem seria diferente e sua iniciativa não faria sentido.” Mitchell compartilha das mesmas dúvidas de Atwood e Smith, mas, a exemplo da mais recente agregada ao projeto, a romancista turca Elif Shafak, tem visão otimista. “Mais que um desafio é um voto de confiança no futuro, apesar das sombras catastróficas sob as quais vivemos. Esperança de que ainda estaremos aqui, ainda haverá árvores, livros, leitores, e civilização.”
Na sexta-feira, 27, o nome de Shakaf, conhecida no Brasil por De Volta a Istambul, chegou ao noticiário cheia de entusiasmo pela possibilidade de escrever para pessoas que jamais conhecerá e sem qualquer compromisso com a repercussão. “É como escrever uma carta e deixá-la à beira de um rio, ao sabor das águas e do tempo”, disse ao The Guardian. Obviamente, ainda não teve tempo de pensar sobre o que irá produzir. Inclinada para um misto de ficção e não ficção, só tem certeza de que tentará refletir as preocupações do seu tempo, vale dizer do nosso tempo, esses “tempos líquidos” em que vivemos, quando tudo muda rapidamente. Tão rapidamente que 100 anos podem parecer um milênio. Ou não.
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