Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo

Autoras brasileiras como Lady Sybylla e estrangeiras como Naomi Alderman usam ficção científica e fantasia para questionar desigualdades de gênero

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No filme Eu Não Sou um Homem Fácil (2018), dirigido pela francesa Eléonore Pourriat, o protagonista Damien (Vincent Elbaz) é um machista contumaz que acorda em um mundo paralelo exatamente igual ao nosso, a não ser por um detalhe: os homens são sistematicamente oprimidos por um matriarcado cruel. Nessa comédia, a cineasta aprofunda a mesma ideia de seu curta Majorité Opprimée (2010). Ferrenho crítico do feminismo, Damien torna-se um “masculista” convicto nessa realidade alternativa, depois de passar pelas humilhações cotidianas que as mulheres sofrem na vida real. “Eu me tornei uma vítima; antes, era um tirano”, ele admite a uma mulher. “E não há um meio-termo?”, ela questiona. Revelador, esse diálogo não só resume a luta pela igualdade de gêneros como ilustra uma tendência interessante no cinema e na literatura: o uso do elemento fantástico ou especulativo para debater questões delicadas.

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A escritora canadense Margaret Atwood (E) foi uma mentora para Naomi Alderman (D) Foto: Bart Mitchiels/Rolex

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A inversão de papéis é a mesma estratégia utilizada pela escritora Naomi Alderman em O Poder, publicado no Brasil pela editora Planeta. Nele, uma mutação concede às mulheres a capacidade de eletrocutar, o que faz o mundo paulatinamente ser dominado por elas. Alderman, assim como Pourriat, não está defendendo uma sociedade assim. Ela demonstra que o feminismo não é a apologia de uma supremacia feminina, mas apenas uma luta por igualdade. Ainda que os atos perpetrados contra personagens masculinos sejam repugnantes, toda aquela opressão já aconteceu no mundo real – e ainda acontece – contra mulheres. “Se é horrível ver homens torturados no livro, e espero que seja, isso é um indício do quão horrorizados deveríamos ficar com essas histórias quando elas ocorrem com mulheres”, afirmou a autora ao Aliás

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É nos detalhes que O Poder e Eu Não Sou um Homem Fácil destacam os privilégios, como quando um escritor vê sua obra restrita à prateleira de “literatura masculina”; quando as mulheres passam a ocupar a maioria dos cargos de destaque nas empresas e na administração pública; ou quando são os homens que se policiam quanto à roupa que vestem, temem andar sozinhos à noite ou precisam ceder às investidas sexuais da chefe para manter o emprego ou conseguir uma promoção. 

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O título do livro não se refere somente ao poder elétrico, mas à natureza do poder na sociedade. A história é contada do ponto de vista de Margot, uma prefeita que vai galgando cargos e aprovando projetos; Allie, uma órfã que passa a angariar seguidoras para sua seita; Roxanne, filha de um gângster que começa a dominar a Máfia; e Tunde, um homem que faz reportagens sobre as revoltas que acontecem ao redor do mundo graças a esse fenômeno. Essas quatro instâncias – política, religião, violência e mídia –, hoje dominadas por homens, tornam-se os motores de uma revolução silenciosa.

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Vencedora do Baileys Women’s Prize em 2017, Alderman vem sendo comparada à escritora canadense Margaret Atwood, o que não é uma surpresa. A autora de O Conto da Aia (1985, reeditado no ano passado pela Rocco), além de ter inspirado essa leva de obras com a adaptação de seu livro, atualmente na segunda temporada, pelo serviço de streaming Hulu, foi uma espécie de mentora de Alderman. Ambas seguem os passos de outras autoras que se utilizavam de elementos especulativos para questionar diferenças de gênero, como Ursula K. Le Guin, em A Mão Esquerda da Escuridão (1969, reeditado em 2017 pela editora Aleph) e Joanna Russ, em The Female Man (1975, ainda inédito em português), além de Octavia Butler, cujos livros distópicos Parábola do Semeador (1993) e Parábola dos Talentos (1998), que abordam feminismo, ambientalismo e religião, serão lançados no Brasil pela primeira vez em 2018. 

Quem inaugurou essa trilha foi a filósofa Margaret Cavendish (1623-1673), autora de The Blazing World (1666), utopia ainda inédita em português. Ela influenciou em grande medida outro livro no mesmo estilo: Herland – A Terra das Mulheres, lançado em folhetim em 1915 pela sufragista norte-americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) e recém-publicada no Brasil pela Via Leitura e pela Rosa dos Ventos. Nesse livro, três exploradores descobrem um país povoado apenas por mulheres. A princípio, não acreditam na inexistência de homens nesse harém, uma vez que as estradas e plantações são bem cuidadas e as construções são fortes, mas acabam sendo obrigados a admitir não só que aquelas mulheres vivem sozinhas, como que sua sociedade é um paraíso se comparada aos Estados Unidos, de onde eles vêm. 

O romance é um exemplar da literatura de aventura que caracterizou a obra de vários autores na virada do século 19 para o 20, quando ainda não existiam imagens de satélite e a humanidade não sabia se já havia explorado a totalidade do planeta ou se ainda encontraria algum continente perdido. Na época, Gilman não obteve o destaque de homens como Júlio Verne, Henry Rider Haggard e Edgar Rice Burroughs. Seu legado, porém, segue vivo na escritora finlandesa Maria Turtschaninoff. Seu livro Maresi (2014), lançado esse ano no Brasil pela editora Morro Branco, conta a história de uma ilha habitada só por mulheres, que vivem em uma espécie de convento para fugir da violência masculina em um mundo inspirado no medievalismo nórdico e com elementos de magia. A história começa com a chegada de Jai à ilha. A menina viu a própria irmã ser morta pelo pai, um homem violento de uma terra na qual as mulheres não podiam andar com os cabelos soltos ou mesmo rir em público.  

Outra obra especulativa recém-lançada no Brasil que trata de questões de gênero de forma original é o romance espacial Justiça Ancilar (editora Aleph). A autora Ann Leckie abre mão dos pronomes masculinos como norma em seu idioma fictício e decide se referir às personagens, independente de seus gêneros, sempre no feminino. O efeito literário dessa opção evidencia o quão arbitrária é a adoção do masculino como padrão em várias línguas, e causa um estranhamento ainda mais acentuado na tradução para o português.

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Não é apenas no exterior que a fantasia é empregada para abordar essas temáticas. As escritoras Aline Valek e Lady Sybylla organizaram, em 2013, o livro Universo Desconstruído, primeira antologia de contos de ficção científica feminista do Brasil. No entanto, enfrentaram resistência quando lançaram a obra. “Essa literatura já tem uma base sólida em outros países desde os anos 1960, mas aqui ainda carecemos de entrar no mercado editorial e ficamos restritas aos nichos”, lamenta Sybylla. 

Uma das poucas casas editoriais que voltaram seu olhar para esse filão foi a Dame Blanche, que publica literatura fantástica e ficção científica escrita por mulheres. “As autoras sempre estiveram lá; são as editoras que, finalmente, perceberam isso e começaram a investir nelas”, afirma Clara Madrigano, uma das editoras da Dame Blanche. “Justamente porque ficção especulativa não costumava ser considerada um gênero sério, os autores se davam permissão de criar em cima do impossível e ela se tornou um laboratório de temas que, de outra forma, não seriam retratados.”

Sybylla, que publicou recentemente a ficção científica Deixe as Estrelas Falarem pela Dame Blanche, afirma que esse gênero confere uma amplitude temática maior para as escritoras. “Envelopar um tema como aborto ou eutanásia em um enredo fantástico pode torná-lo mais palatável. É possível criar uma imersão para um leitor que, na literatura dita realista, torceria o nariz. Às vezes, é a única forma de um público conservador possa ter acesso a esse tipo de conteúdo e de provocar uma discussão.”

Embora esse gênero esteja crescendo no País, ainda falta aos autores formar uma identidade nacional. “A formação do autor nacional de ficção especulativa é curiosa, porque nós temos muitas referências de fora e poucas referências de dentro”, lamenta Madrigano. “Bebemos muito de fontes estrangeiras, e acho que as nossas autoras ainda estão tentando encontrar um tom, algo que seja só nosso”, acrescenta a editora.

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